Adriano Londres
Recentemente participei de um podcast (Prontcast #005), da Prontmed, em que seu CEO, Lasse Koivisto, citou uma frase do ex-ministro da Saúde Nelson Teich ao dizer: “O mercado de saúde não quebra, ele apenas passa a atender menos.” E é exatamente isso que temos visto acontecer no setor de saúde suplementar. Afinal, considerando-se os 49,1 milhões de beneficiários de março de 2022, temos 1,4 milhão a menos do que os 50,5 milhões de dezembro de 2014 e o mesmo número de beneficiários hoje que tínhamos em setembro de 2013.
Salvo o que observamos durante a pandemia, historicamente o número de beneficiários tem forte correlação com a geração ou eliminação de empregos. Mas a meu ver não é suficiente atribuir apenas a essa dinâmica a questão de acesso ao setor. Afinal, quantos beneficiários a mais poderíamos ter se de fato estivéssemos coletivamente comprometidos em corrigir, entre outras tantas questões: (1) os fragmentados e hospitalocêntricos modelos assistenciais; (2) os conflitados modelos de remuneração, pautados por volume, descomprometidos com a medição de valor e, por vezes, pouco transparentes e (3) as causas das conhecidas formas de corrupção e fraude no setor.
Mas, por onde começar já que os desafios são complexos? No artigo “Ampliando a Perspectiva de Valor em Saúde: Uma Proposta para o Contratante”, cito uma frase da ex-diretora da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Martha Oliveira, que resume o que acredito. Disse ela: “Para virar o jogo, precisamos começar com o que temos.” Nesse sentido, sem demérito a tudo mais que sabemos que precisa ser endereçado, quero abordar uma informação específica que já existe, mas que é frequentemente desconhecida. Refiro-me à remuneração das corretoras de planos de saúde. Explico melhor esta questão destacando dois resultados da última edição da Pesquisa de Valor na Prestação de Serviços de Saúde que fazemos na Arquitetos da Saúde com empresas contratantes de planos de saúde.
Especificamente em relação à interface do contratante com a corretora de planos de saúde, fizemos duas simples perguntas: (1) Na relação com sua corretora há um acordo de nível de serviço? e (2) você sabe quanto ganha a sua corretora? Pois bem, pasmem! 51% dos respondentes não têm pactuado com a corretora de planos de saúde o que esperam do ponto de vista de prestação de seus serviços e 63% não sabem quanto pagam. Difícil compreender o quanto que, em certo grau ao menos, os contratantes de planos coletivos empresariais ainda contribuem com esse status quo.
Colocando a lupa especificamente na questão do desconhecimento sobre a remuneração da corretora de planos de saúde, o impacto negativo pode ser triplo. Em primeiro lugar, ao não saber quanto custa um serviço, a cobrança por valor fica comprometida. Em segundo lugar, no cenário reinante em que a remuneração é paga a partir de um percentual da fatura, o potencial conflito de interesse é latente. Afinal, em tese, “quanto pior (para o cliente), melhor (para a corretora).” Em terceiro lugar, ao corrigir anualmente a remuneração de corretoras pelo índice de reajuste dos contratos, sempre maior e totalmente desassociada da variação dos custos de prestação de serviço das corretoras, encarecemos desnecessariamente o sistema.
Cabe destacar que as operadoras de planos de saúde também têm grande responsabilidade sobre essa dinâmica, pois além de não darem transparência aos seus clientes quanto à remuneração paga às corretoras de planos de saúde, por vezes oferecem agenciamentos exorbitantes (em muitos casos chegando até 200% ou 300%), que estimulam o giro rápido da carteira empresarial e não a sua gestão, resultados e retenção.
Voltando especificamente à remuneração das corretoras de planos de saúde, para fins desta reflexão, medimos o montante de despesas comerciais pagas acima da variação do IPCA nos últimos anos. Como primeiro passo apuramos, com base em dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), as despesas comerciais anuais por membro entre 2011 e 2021, que foram pagas por seguradoras, medicinas de grupo, cooperativas médicas, cooperativas odontológicas e cooperativas de grupo. Em paralelo, tendo como ponto de partida a despesa comercial por membro por ano de 2011, corrigimos este valor pelo IPCA até o ano de 2021. Pasmem: conforme demostra o quadro abaixo, a diferença entre essas medições totalizou (sem qualquer correção) R$ 7,8 bilhões no período!
Não podemos afirmar que 100% da rubrica despesas comerciais (DC), na qual está incluída a cifra acima citada, foi efetivamente paga a corretoras de planos de saúde, ainda que a imensa parte seja sim relacionada a comissionamentos como pude validar com alguns executivos de operadoras de planos de saúde. Tampouco temos como medir quais as corretoras de planos de saúde que efetivamente retornaram parte desse “excedente” ao cliente sobre a forma de serviços agregados e/ou devolução de recursos. E muito menos como saber qual a pequena parcela daqueles que já alinharam os incentivos de sua remuneração ao trabalharem a partir de um fee corrigido pela inflação.
O objetivo desta análise não é de acertar o número na mosca, mas sim dar uma ordem de grandeza do que foi pago de “premiação” às corretoras sobre a ineficiência do setor. Como já vimos, a maior parte dos clientes sequer sabe quanto paga de comissionamento e, assim sendo, tampouco sabe das distorções existentes naquilo que sai de seu bolso. Ao fim e ao cabo, a partir deste simples exemplo, estamos falando da importância de trazer transparência às relações da cadeia de saúde suplementar como um todo.
Pensando bem, quantos outros exemplos existem no setor como um todo que geram “premiações” que muitas vezes expõe pacientes e sempre encarecem o sistema? Qual o impacto assistencial e financeiro, por exemplo, da falta de pertinência na indicação de procedimentos? E de exames que são repetidos desnecessariamente? E das diversas forma de corrupção e fraude no setor? Neste quesito, apenas como exercício, se considerarmos a proporção de apenas 1% (sim, eu sei que você acha que é mais, mas vamos considerar apenas 1% para fins deste exercício), estamos falando 14 bilhões de reais em neste mesmo período de 2011 a 2021.
Junte-se, por exemplo, aos R$ 7,8 bilhões acima citados, e já estamos falando de quase R$ 22 bilhões (sem correção, cabe destacar). Isto para ficar em dois meros exemplos que, quero crer, sejam minimamente suficientes para gerar desconforto de um lado, e reflexão, de outro, sobre quantos outros tantos exemplos de “premiações” existem que encarecem o sistema e comprometem o acesso, mas que coletivamente preferimos não endereçar. Até porque, convenhamos, parte dos lucros da cadeia como um todo está ancorada nesta lógica, aliado ao fato de que, quem paga por isto no final do dia, não sabe e/ou demonstra não se incomodar.
Pois bem, transparência não é a solução em si, mas com certeza é parte do caminho que precisamos trilhar. E, neste sentido, a resolução 382 de 2020 da Superintendência de Seguros Privados (Susep) fez a sua parte quanto a remuneração de corretoras ao “estabelecer princípios a serem observados pelas seguradoras e intermediários no que se refere ao relacionamento com cliente…. que precisa saber quanto paga pela consultoria prestada.”
E o que fez ou tem a dizer a ANS sobre este mesmo tema uma vez que regula as operadoras de planos de saúde que não são atingidas pela resolução da Susep? Por que não seguir o exemplo da Susep ao determinar a inclusão dessa simples informação nos contratos de planos de saúde das operadoras? Claro que despesas comerciais fazem parte da nota técnica dos planos de saúde comercializados e foram precificadas, além de a ANS não regular as corretoras de planos de saúde ou odontológicos. Mas afinal, trazer transparência ao setor não estaria alinhado com a sua missão de “promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regular as operadoras setoriais – inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores – e contribuir para o desenvolvimento das ações de saúde no país”?
O que pensam Abramge e FenaSaúde, por exemplo, a respeito do tema? São favoráveis a uma norma nessa linha que traga transparência para as relações de seus associados com seus respectivos clientes? Até porque as operadoras teriam muito mais autonomia que a ANS para estabelecer novos princípios nessa relação comercial.
E o que pensa a Federação Nacional dos Corretores de Seguros Privados e de Resseguros, de Capitalização, de Previdência Privada, das Empresas Corretoras de Seguros e de Resseguro (Fenacor) a respeito dessa mesma sugestão?
Faço aqui o registro de que corretoras de planos de saúde constituem um importante e estratégico elo da cadeia de saúde suplementar. Em momento algum estou questionando o seu papel, mas apenas trazendo reflexões sobre a necessidade de maior transparência na sua atuação.
Em suma, trazer transparência ao setor com base no que já temos e naquilo que precisamos construir (leiam Clemente Nobrega no LinkedIn sobre desfechos clínicos) é inquestionável como caminho para maior conscientização por parte do tomador de decisão e consequentemente mais eficiência no cuidado e na utilização de recursos. E gerar mais eficiência contribui para gerar mais acesso. É sobre isto, creio eu, a mensagem embutida na frase do ministro Teich.
Que tal colocarmos um pouco mais de luz do sol sobre tudo aquilo que já é “sabido”, mas que ainda não é medido e/ou comunicado de forma transparente? Alguém é contra?