Adriano Londres
A paisagem da saúde suplementar vem se alterando de forma exponencial, impondo crescentes desafios para as lideranças ao longo de toda a sua cadeia. Para contextualizar um pouco mais o assunto, compartilho abaixo um pouco do que testemunhamos em menos de uma década:
- A interrupção de um período de crescimento econômico a partir de 2015, o que tem forte correlação histórica com o crescimento no número de beneficiários;
- Ainda que o setor tenha crescido durante a pandemia, o saldo é negativo em 1,8 milhão de beneficiários considerando-se o pico de mais de 50 milhões em 2014;
- A aprovação de uma lei permitindo a entrada de capital estrangeiro em hospitais brasileiros a partir liberação a partir de 2015;
- O expressivo crescimento de grupos econômicos, tanto de operadoras de planos de saúde quanto de redes de prestadores de serviços médico hospitalares. Segundo relatório sobre atos de concentração no mercado de planos de saúde, hospitais e medicinas diagnósticas do Conselho Administrativo de Defesa do Consumidor (Cade), foram analisados 31 casos de concentração por ano nos últimos quatro anos, com um pico de 48 notificações em 2020;
- O crescimento de aproximadamente dois milhões de beneficiários no segmento de medicinas de grupo (fortemente impulsionado pelas operadoras verticalizadas) nos últimos sete anos, em contraste a perda de beneficiários dos demais segmentos;
- O achatamento da pirâmide de beneficiários de planos de saúde, com crescimento na base a partir de produtos mais baratos, com menor abrangência e/ou menor rede de credenciados;
- O surgimento e forte expansão de healthtecs. Mais recentemente, passaram de 542 em 2020 para 1.158 até outubro de 2021, gerando uma captação de mais de 344 milhões de dólares em investimentos apenas neste período, representando um aumento de 329% em relação ao ano anterior;
- A retomada da comercialização de planos de saúde individuais, a partir de algumas destas novas healthtecs;
- Operadoras de planos de saúde pensando cada vez mais fora da caixa na busca de maior eficiência. Segundo matérias distintas do Jornal Valor Econômico: (1) a Sul América anunciou apostar em “modelo de verticalização virtual”. (2) A Bradesco Seguros comunicou que irá “criar uma empresa de investimentos em hospitais”. (3) O Sistema Unimed “prevê a criação de um fundo imobiliário para as cooperativas captarem recursos com a venda de ativos”;
- A pandemia de Covid-19 com “repercussões não apenas de ordem biomédica e epidemiológica em escala global, mas também repercussões e impactos sociais, econômicos, políticos, culturais e históricos sem precedentes na história recente das epidemias”, conforme registrou o Observatório COVID-19 da Fundação Oswaldo Cruz;
- O impulsionamento exponencial de investimentos de telemedicina durante a pandemia, com crescimento de 316% em 2021, segundo uma pesquisa levantada pela consultoria de Saúde Mercer Marsh;
- As tentativas de enfraquecimento da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), trazendo o risco de “transformar a Lei 9.656/98 em letra morta” como bem alertou João Luis Barroca, médico e ex-Diretor da ANS em seu artigo Como dar vida e solidez aos regramentos de temas assistenciais essenciais ao funcionamento de um novo mercado. Em tempo, um exemplo de alto teor simbólico neste sentido se traduz pela vacância por longo período, de quatro dos cinco diretores da referida agência;
- A queda expressiva nos valores de ativos de saúde listados em bolsa, com redução entre 30% e 50% nos últimos doze meses;
- A “gangorra” de resultados de operadoras de planos de saúde versus prestadores de serviços médico-hospitalares. Enquanto 2020 foi positivo para as operadoras e ruim para prestadores, 2021 alternou este resultado. Na conjuntura de “farinha pouca, meu pirão primeiro”, o curto prazo reina e as relações tensionam;
- Apenas nos dois últimos meses, vimos movimentos emblemáticos e antagônicos de mercado: de um lado, o recente aporte de 127 milhões de dólares na novata healthtec de planos de saúde Alice e, de outro lado, a proposta bilionária da United Health Group (UHG) (por hora paralisada pela ANS) para se livrar da carteira deficitária de aproximadamente 340 mil beneficiários de planos de saúde individuais da Amil
- A decisão da UHG em deixar o país, passando a oferecer ao mercado toda a sua operação de planos de saúde e rede de hospitais.
O que esperar de 2022 neste contexto de grandes mudanças, novas dinâmicas de mercado, e tantas incertezas e, ao mesmo tempo, expectativas?
Antes de prosseguirmos com esta reflexão, cabe o registro de duas projeções que têm sido divulgadas e que, em se confirmando, tornam o ano de 2022 ainda mais desafiador. Segundo dados do Banco Mundial, o Brasil deve crescer apenas 0,3% este ano. Em contrapartida, a inflação médica deve ser recorde, ultrapassando a casa dos 15%.
O que farão empresas que contratam planos de saúde (e representam 68% do mercado) para acomodar os aumentos na magnitude projetada para este ano? Afinal, nos últimos anos, muitas delas já queimaram o estoque de “possibilidades exógenas” visando neutralizar a escalada de custos de seus planos de saúde. Entre elas, destaco o aumento de coparticipação (como revelou a pesquisa de Saúde Corporativa da ABRH Brasil e ASAP de 2020), a troca de operadoras e/ou downgrade para produtos regionais e/ou com rede mais restrita.
O que terão de “munição” no curto prazo? Os corretores em busca de novas receitas a partir de agenciamentos pela troca de operadoras ainda terão espaço? Ou terão as empresas compreendido que a simples mudança de operadora não garante a mudança de comportamento e, consequentemente, da evolução de custos?
Será que os contratantes finalmente entenderão, pelo menos as médias e grandes empresas, que precisam assumir em definitivo a rédea da gestão do benefício e da saúde de seus colaboradores e dependentes? Mas, ainda que o façam, os resultados possíveis nesta direção não têm como ser colhidos no curto prazo.
As operadoras conseguirão repassar os aumentos de custos observados ou terão que “recorrer” a seus fornecedores (a rede de prestadores de serviços médico-hospitalares) para atingir os resultados que esperam? Vejo dois caminhos não excludentes neste cenário. De um lado, pressão crescente por redutores de tabelas e/ou compartilhamento de riscos. De outro, a aceleração da construção estratégica e transparente de relações ganha-ganha com prestadores confiáveis e diferenciados.
E o que dizer a respeito da pandemia? Tivemos avanços importantes na vacinação no Brasil e as novas variantes demonstram ser menos letais. Sairemos afinal de uma fase pandêmica para uma fase endêmica?
Indo além, qual será a curva de crescimento de beneficiários? Será que continuaremos crescendo, como vem ocorrendo exclusivamente durante a pandemia ou esta curva tenderá a desacelerar em função da perspectiva de fortes aumentos dos planos de saúde e crescente dificuldade de custeio do segmento de pequenas e médias empresas, exatamente aquele que mais impulsionou o crescimento do setor?
Como vimos mais acima, os ativos de saúde listados na bolsa tiveram redução expressiva no último ano. Terá o mercado reprecificado estes ativos em função de perspectivas mais conservadoras para o setor? Neste sentido, investidores terão compreensão sobre o momento atual ou pressionaram estas empresas por resultados de curto prazo para atingirem os resultados prometidos? O que esperar destes e, consequentemente de suas empresas investidas?
E as bem-vindas healthtecs para as quais também jorraram vultuosos recursos? O tempo de estruturação e maturação de suas propostas (daquela parcela que efetivamente tem algum grau de consistência e foge ao modismo raso) é longo. Ou seja, dificilmente veremos, inclusive pelo porte e impacto delas, resultados que contribuam para mais eficiência do setor como um todo no curto prazo.
E o que dizer sobre a tão falada mudança de foco no modelo assistencial? Como bem destacou Manoel Cardoso em recente post no LinkedIn, “hoje as fichas estão todas apostadas em cuidar das pessoas antes que adoeçam.” De fato, temos visto um movimento generalizado, de abandonar o discurso e partir para a prática nesta direção. Mas, não nos iludamos, esta será uma gestação de longa duração.
Em tempo, teremos ainda um ano de eleições o que faz do ano de 2022 um ano ainda mais desafiador acrescentando incertezas adicionais aos rumos do país.
Resumindo, o ano de 2022 tem tudo para se traduzir num ano nervoso. De um lado temos certezas desafiadoras de curto prazo e, de outro, inúmeras incertezas e, ainda, promessas e expectativas apenas de médio longo e longo prazo.
Em parte, este é o preço que coletivamente pagamos pelo baixíssimo endereçamento de ações voltadas para uma maior eficiência do setor ao longo dos últimos anos.
Apertem os cintos e pensem fora da caixa!