Os planos de saúde não viveram o caos previsto em 2020 e talvez não vivam em 2021
Em março de 2020, no início da pandemia, havia a expectativa de uma tragédia anunciada no setor de saúde suplementar no Brasil: a economia vai despencar, o desemprego vai explodir e o número de beneficiários de planos de saúde terá uma grande queda. Desde a Lei 9.656/98, sempre existiu uma correlação muito forte entre economia e número de beneficiários. No entanto, como as pessoas só podem pagar pelo plano enquanto têm renda e num mercado onde 67% dos planos são subsidiados parcial ou totalmente pelas empresas, é de se esperar que o índice de desemprego seja um indicador sensível ao número de beneficiários.
Em poucos meses, por um breve tempo, vimos de fato uma perda significativa de beneficiários segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Já em maio de 2020 a ANS apontava uma queda de 283.677 beneficiários, puxada sobretudo pela diminuição dos contratos empresariais. Em junho do mesmo ano chegamos a perder 314.099 e, em julho, houve uma leve recuperação, mas ainda com perdas. Em novembro já tínhamos reposto e recuperado os beneficiários em comparação ao início da pandemia (mar/20). Olhando para a “Sala de Situação” no site da ANS (dados referentes ao dia 22/02/2021), com base nos números de setembro/2020, temos o incrível número de 47.564.363 de usuários de planos privados de saúde. O primeiro crescimento efetivo do setor desde 2014. Um crescimento de 527.060 beneficiários na comparação com março/20.
Essa pandemia tem ensinado que apesar da existência do Sistema Único de saúde (SUS), o brasileiro fez de tudo para manter seu plano de saúde e muitos que talvez não tivessem correram para adquirir um.
Início da pandemia (maio/2020)
Dados de setembro/2020 informados pela ANS em 22/02/2021
Este fato por si só tem grande significância, pois como disse no começo, a expectativa era de perdas significativas. Tanto é que a ANS debateu e desenvolveu estudos para flexibilizar as reservas técnicas das operadoras durante a pandemia como forma de prevenir que elas tivessem dificuldade de fluxo de caixa.
Segundo o estudo que conduzi na Arquitetos da Saúde no ano passado, as perdas previstas – conforme a correlação histórica de dados econômicos e número de beneficiários, mais a expectativa econômica para o final de 2020 e 2021 – deveriam ficar entre 790.923 e 1.221.895 beneficiários. Na prática, ao invés de encolher, o mercado recuperou mais de meio milhão de vidas! Isso é incrível! E de certa forma difícil de compreender. Uma coisa é manter, mas como foi possível que as empresas tenham ampliado essa base em 365.667 beneficiários sem aumento do emprego? Afinal, segundo o PNAD, até setembro de 2020 a taxa de desocupação foi de 14,6% ante setembro de 2019, que foi de 11,8%. Seriam os PME de duas a três vidas?
Também em março de 2020 a ANS anunciou a flexibilização de uma série de modalidades de reservas técnicas, entre garantias financeiras e ativos garantidores, com a contrapartida de que as operadoras ofereceriam renegociação para a manutenção de contratos individuais e coletivos menores do que 30 vidas que mantivessem em dia o pagamento de fornecedores.
O que se viu daí em diante foi um forte represamento das contas médicas, pois os prazos máximos de atendimento foram suspensos e as cirurgias eletivas em dado momento também foram suspensas. Mesmo após o retorno desses procedimentos, o que se viu foi um esvaziamento dos prontos-socorros, consultas eletivas, seus consequentes exames solicitados nas consultas e menor quantidade de cirurgias que de fato poderiam ser adiadas. O reflexo disso? Uma queda de 10 pontos percentuais na sinistralidade média do mercado, passando de persistentes 83% para 73%. Isso reflete direta e positivamente no resultado das operadoras.
Outro indicador que precisamos considerar é a VCMH de 2020. Com dados de sinistro disponíveis apenas até setembro, o 3º trimestre de 2020 comparado com 2019 indica VCMH negativa! Imagine o dado inédito e simbólico disso. Pela primeira vez em 22 anos teremos uma deflação na variação dos custos médicos per capita. Tratarei disso mais detalhadamente em um próximo artigo, mas considerando os dados da ANS na seção “Sala de Situação” do seu site, calculamos um índice negativo de VCMH em 7,34%. Para um setor acostumado ao aumento do custo em dois dígitos, é uma grande novidade.
O último indicador é o aumento nominal da receita de contraprestações (o prêmio). Um incremento de mais R$ 7,27 bilhões, ou 4,66% de aumento no acumulado do 3º trimestre de 2020 ante 2019. Considerando que pouquíssimos contratos foram reajustados antes da medida de suspensão da ANS, esta receita representa um crescimento efetivo e não orgânico dos prêmios pagos às operadoras.
Repassando:
1 – Crescimento do número de beneficiários
2 – Flexibilização das reservas técnicas
3 – Represamento das contas médicas
4 – Diminuição da sinistralidade
5 – VCMH negativa
6 – Aumento das receitas em ano praticamente sem reajuste
Esse seria o contrário de uma tempestade perfeita? Seria a bonança perfeita? Não acredito em qualquer premeditação, já que os efeitos da pandemia não poderiam ter um cenário seguro. Minha opinião é que todas as ações isoladas de proteção de mercado tiveram sua lógica à época. Talvez na forma estabelecida para a suspensão do reajuste tenha faltado apenas a opção das pessoas escolherem se queriam ou não aderir e me parece que não ficou claro para boa parte as consequências para o próximo ano. Tanto é que as manchetes deste ano abordaram o aumento sensível nas mensalidades dos planos, inclusive em função da variação das faixas etárias, que também foram suspensas. Talvez tivesse sido válido prorrogar a data base do cálculo do próximo reajuste ou algo parecido.
O que me pergunto agora é se essa suposta bonança se transformará em tempestade em 2021. A Defensoria Pública da União (DPU) já recomendou à ANS a suspensão dos reajustes de 2021 e a discussão com participação social sobre a necessidade de reajustes em 2020 e 2021. Já se sabe que os reajustes suspensos e retroativos a 2020 começaram a ser cobrados em 12 vezes a partir de janeiro deste ano. A regra de cobrança só ficou conhecida quase às vésperas da primeira parcela e, agora, corremos o risco de mais confusão e incertezas pela frente. Temos também a própria pandemia que durou mais que o previsto e se não houver a flexibilização das regras da manutenção do emprego formal, tal como redução de jornada de trabalho ou suspensão temporária do contrato de trabalho, podemos ter uma inversão de todos esses indicadores. Nem vou comentar sobre o fim do auxílio emergencial, pois penso que quem tem direito a este beneficiário não é público-alvo para adquirir um plano de saúde privado. Uma coisa é uma classe média que conseguiu manter ou até mesmo adquirir plano de saúde durante a pandemia (acréscimo de 180.146 beneficiários de contratos individuais ou por adesão, segundo a ANS). Outra coisa é o trabalhador comum sem a cobertura de plano de saúde oferecido pelas empresas (acréscimo de 365.667 beneficiários, segundo a ANS) conseguir comprar um plano sem emprego. Haja reserva financeira!