Seria melhor pelo amor do que pela dor | Arquitetos da Saúde
Gestão na Prática

Seria melhor pelo amor do que pela dor

Por enquanto não é possível medir, mas tenho a percepção de que já estamos vivenciando um ambiente mais racional em relação à utilização dos recursos de saúde. Quem vai em pronto socorro agora é quem realmente precisa de atendimento emergencial. Eventos desnecessários provavelmente estão sendo adiados.

Cuidados preventivos com alimentação, saúde mental e atividade física estão sendo mais discutidos. Até a telemedicina avançou com uma regulamentação recente em função do coronavírus, pois se não fosse por isso, ainda estaria em vigor uma resolução do CFM desatualizada e praticamente abandonada há 18 anos. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), por sua vez, está olhando com mais cuidado para a questão da liquidez das operadoras. Os grandes prestadores, com certeza, estão revendo o treinamento das equipes, a eficiência da operação, etc. Tudo isso pode trazer aprendizados para depois da crise.

Um ambiente de boas medidas ou comportamento nos foi proporcionado de maneira forçada. Mas por que precisamos passar pela crise para fazer a toque de caixa o que já deveria estar pronto? Parafraseando um ditado conhecido de alguns: seria melhor pelo amor do que pela dor.

As empresas contratantes de planos de saúde corporativos também terão uma oportunidade para rever o papel do benefício. Aliás, não sei se elas se darão conta agora ou depois porque, afinal, estão todas lidando com outras questões urgentes como contingenciar serviços, definir a sua situação financeira, o quadro de funcionários, manter as vendas etc. Eu, particularmente, acredito que as empresas poderão olhar para trás em breve e ver como uma mudança de comportamento (ainda que forçada) afeta a sinistralidade do contrato. Acredito também que veremos uma situação distinta em alguns estágios. Primeiramente de queda na sinistralidade no curto prazo devido ao isolamento social que reduz a ida a prontos-socorros e até mesmo a consultas eletivas e exames, do que for relativo à segunda quinzena de março e ao mês de abril (ou seria até maio?), que vai se refletir em regime de caixa com um delay de 60 dias em média.

Depois disso, num segundo momento, também poderá existir um aumento de demanda reprimida da qual boa parte será verificada somente no final de 2020 ou no início de 2021.

Isso sem considerar o custo do tratamento do coronavírus, pois é cedo para estimar seus impactos no custo com todos aqueles que demandarão tratamento em UTI por conta de complicações respiratórias. Ainda assim, mesmo a demanda sendo apenas uma especulação do que será de fato, o custo nominal dos eventos relacionados ao tratamento já tem valor nominal bem estabelecido como, por exemplo, diárias de UTI, taxas de respiração mecânica, etc. O custo ainda não muito divulgado, de maneira geral e principalmente na rede médica, é o do teste laboratorial para o Covid-19, mas mesmo ele será quase sempre determinado por um custo fixo pré-estabelecido.

Neste momento todos os esforços para ampliar a capacidade de atendimento são muito importantes. Sobretudo as ações do Ministério da Saúde, estados e municípios com a ampliação de leitos através de hospitais de campanha e inclusive várias destas ações com a colaboração da iniciativa privada. Apenas constato que até aqui a cobertura jornalística na esfera do tratamento hospitalar tem sido muito mais sobre a disponibilidade de vagas e equipamentos e de controle da contaminação do que sobre o custo em si relativo ao tratamento. Neste momento entendo que o enfoque realmente tenha de ser este.

Quanto tudo isso passar, ainda teremos a questão da economia. O plano de saúde tem grande correlação com a economia e o emprego. Desde a última crise econômica, a saúde suplementar perdeu aproximadamente três milhões de beneficiários, mas este número vinha lentamente sendo recuperado. Com o possível aumento do desemprego, no entanto, o setor tende a encolher mais uma vez com a perda de mais beneficiários.

Qual o aprendizado que poderá ser aproveitado pelas empresas? A demanda é o indicador mais importante a ser gerenciado por uma empresa que faz gestão do seu plano médico. Mais do que o prêmio, mais do que a sinistralidade. A gestão da demanda não tem a ver com restrição de acesso, mas sim com a racionalidade dele através de um uso mais consciente, ou seja, com novas percepções de que um acompanhamento médico preventivo não pode ser substituído pelo pronto-socorro, que certas intervenções clínicas ou cirúrgicas (ortopédicas por exemplo) não devem ser feitas sem uma segunda opinião médica ou que nem sempre garantir uma liminar para a cobertura de um evento fora do rol traz ganhos efetivos ao paciente. Muitas vezes, é lógico, falta diálogo da empresa com os colaboradores ou uma melhor equalização do acesso conforme a rede médica disponível. Sempre há lições para os dois lados.

Um único paralelo que me lembro de um fluxo de caixa das contas médicas ter sido alterado por um grande evento foi na copa do mundo no Brasil, em 2018. Naquele ano presenciei contratos coletivos com muitas contas serem represados em função dos jogos. Foram meses com equipe administrativa reduzida em algumas operadoras e prestadores e, após os jogos, todas as contas que não tinham sido avisadas ou pagas pela operadora foram despejadas na apropriação da sinistralidade. Desta vez a demanda de fato mudará por vários meses e trará um laboratório importante sobre como um evento externo altera o comportamento da demanda e consequentemente do fluxo de caixa das despesas médicas. Vamos acompanhar.

Por fim, também aprenderemos o valor de termos um sistema de saúde brasileiro com lógica universal: o SUS, que faz toda a diferença neste momento. O valor da pesquisa científica pública em saúde e talvez o entendimento de que a saúde privada é de fato suplementar, ou seja, o plano de saúde está à disposição da população brasileira apenas para melhorar o acesso e não para garanti-lo. Quanto mais integrada a visão universalista do SUS com o sistema privado suplementar, maior a possibilidade de debate por novos produtos, regulamentação que flexibilize o rol e as suas possibilidades de contratação, etc. Tomara que estejamos antecipando em anos várias discussões necessárias no sentido de melhorar o acesso à saúde.

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