Muito tem se falado sobre a pandemia do coronavírus e os caminhos que o Brasil e o mundo vêm traçando no sentido de combatê-la. Neste contexto naturalmente surgem dúvidas, reflexões, críticas e propostas sobre o melhor caminho a ser traçado visando, em primeiro lugar, à preservação de vidas mas também à resultante viabilidade social e econômica do país.
Sem desmerecer o “coronami” (mistura de coronavírus com tsunami) que não sai das manchetes e de nossas mentes e almas, gostaria de refletir sobre uma epidemia ainda não erradicada e com proliferação mais lenta, longeva e danosa (me arrisco a dizer) que tem trazido impactos profundos na saúde suplementar (para fins desta reflexão) em nosso país.
Neste sentido, volto no tempo uns quinze anos e me recordo de uma conversa com o amigo, médico e professor Marcos Bosi Ferraz. Na ocasião, falávamos sobre o quanto o vácuo de lideranças na saúde suplementar (mas não apenas, para fins daquela conversa) comprometia a construção de um sistema mais eficaz, justo e sustentável. Percebo hoje, “inspirado” talvez pela pandemia do coronavírus, que falamos de um outro vírus, o “chefia-vírus”.
Pensando bem, antes de prosseguir aqui, talvez fosse importante uma rápida distinção entre chefes (contaminados pelo “chefia-vírus”) e líderes:
1. Chefes ocupam cargos, líderes preenchem mentes;
2. Chefes se impõem, líderes conquistam;
3. Chefes provocam reflexos, líderes provocam reflexões;
4. Chefes clamam por direitos, líderes também recomendam deveres;
5. Chefes constroem muros, líderes constroem pontes;
6. Chefes são políticos, líderes também são técnicos;
7. Chefes aumentam a insegurança, líderes reduzem as incertezas;
8. Chefes encontram culpados, líderes assumem a responsabilidade;
9. Chefes são corporativistas, líderes têm espírito público;
10. Chefes defendem o todo da parte, líderes defendem a parte boa do todo.
Dito isto, vejamos apenas alguns dos sintomas do “chefia-vírus” na saúde suplementar:
1. Passados mais de vinte cinco anos de estabilidade econômica, na prática pouco mudamos o nosso “mindset” de forma a efetivamente construirmos um sistema pautado por recomendadas ou consolidadas práticas assistenciais, ainda que já tenhamos a compreensão de que a otimização de custos necessariamente será desdobramento desta medida;
2. Jamais existiu uma única agenda positiva do setor, com metas claramente definidas, validada conjuntamente pelos representantes das entidades de classe que representam todos os elos existentes;
3. Com imensa frequência nas tentativas de união em torno do setor, valorizamos mais aquilo que nos separa do que aquilo que nos une;
4. Em momentos de maior tensão ou dificuldade nas relações, corremos para os bunkers de nossas entidades, fincando posições ao mesmo tempo em que buscamos culpados. Na prática, acabamos revelando que muitas vezes não nos interessa mudar;
5. É verdade que individualmente nos tornamos mais eficazes do ponto de vista operacional, mas jamais mais sustentáveis do ponto de vista sistêmico. Como resultado, os únicos pagadores desta conta foram beneficiários e empresas contratantes de planos de saúde. Ou seja, retiramos riquezas (assistenciais e financeiras) valiosas destes para produzir parte de nossos resultados;
6. Ainda assim, com raras exceções, grandes contratantes preferem trocar experiências (ou seriam inexperiências) ao invés de se organizarem politicamente em torno de uma efetiva representação. Em suma, são vítimas, mas também culpados da conta que “pagam”, seja pela ausência de soluções assistenciais seja pelos seus custos resultantes;
7. As raras ações de entidades representativas, no sentido de gerar transparência, foram usadas prioritariamente como munição para atacar os “inimigos” muito mais do que um guia para nortear mudanças necessárias;
8. As agendas institucionais, inclusive junto ao órgão regulador, têm sido historicamente de direitos e reinvindicações muito mais do que de deveres e contribuições. Muitos ainda se enxergam prioritariamente como vítimas;
9. Entidades representativas com frequência se calam diante de fatos delicados ou impopulares (ainda que tecnicamente defensáveis), na medida em que, não sendo diretamente impactadas, preferem silenciar a se expor (vide exemplo do silêncio das entidades de prestadores no contexto da discussão de coparticipação e franquia);
10. E, corporativamente, outras tantas procuram manter as coisas como estão (vide exemplo do CFM no contexto da telemedicina), deixando latente que o bem da sociedade está em segundo plano.
Assim sendo passada a pandemia do coronavírus, que possamos direcionar nossos esforços para erradicar a epidemia do “chefia-vírus” nas entidades de classe representativas na saúde suplementar. E que fique como lição a compreensão de que certos males somente serão vencidos a partir de posturas individuais necessariamente pautadas por um olhar coletivo. Isso necessariamente começa dentro de casa, em cada entidade de classe, onde com frequência os bons (que têm uma visão coletiva) têm se calado. Pensemos nisto daqui para a frente, diante da responsabilidade que temos frente às nossas diversas representações políticas.
Em tempos de coronavírus, não posso encerrar esta reflexão (ou provocação) sem antes registrar o meu especial agradecimento a alguns (entre muitos) daqueles que têm atuado como incansáveis líderes, com ou sem cargo, cada qual no limite de suas possibilidades e no seu respectivo universo de atuação, trazendo esperança ao mesmo tempo em que nos acolhem: Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (incluindo equipe técnica e todos os profissionais de saúde do pais), Margareth Dalcolmo, Chao Lung Wen e Josier Vilar. Obrigado por nos mostrarem a diferença que fazem os verdadeiros líderes.