Outro dia peguei-me pensando sobre algumas cenas recentes e inusitadas, mas de alto teor simbólico, que sutilmente e por longo tempo me colocaram a refletir. Em uma delas, durante uma live que assistia no Youtube com o presidente do BNDES, pude escutar ao fundo o cantar dos pássaros, algo inesperado para o ambiente corporativo. Numa outra reunião, assisti uma senhora silenciosamente se aproximar de um dos presentes, lhe trazendo uma xícara de café, num gesto aparentemente simples, mas de alto teor afetivo. Igualmente, uma cena inusitada. E, por fim, eu mesmo fui surpreendido numa reunião por vídeo com vários executivos quando, de forma brincalhona, fui alertado que havia um gato ao fundo, majestosamente sentado e observando o que estava ao seu redor como se participasse de forma atenta da reunião. Tornou-se, inclusive, um momento de descontração entre os presentes.
O que estas cenas têm em comum além do fato de ser algo impensável até poucas semanas atrás? Simples: a partir destas cenas de profissionais em home office, coloquei-me a refletir sobre a dimensão humana e familiar de todos nós enquanto profissionais. Em seguida, passei a pensar que muito provavelmente estamos diante de um divisor de águas em relação à dinâmica de como muitos trabalham atualmente. Entre as inúmeras perguntas que brotaram na minha mente destaco algumas:
- Qual o custo emocional, físico e de saúde de tantos profissionais que consomem horas e horas apenas para ir e vir do trabalho, num contexto de caótica mobilidade urbana?
- Dada a evolução tecnológica, que de forma inequívoca demonstra ser possível trabalhar fora dos muros corporativos, será chegada a hora em que empresas irão repensar esta dinâmica, provavelmente mais improdutiva do que algo mais flexível neste sentido?
- Qual o impacto de eventuais mudanças na maneira de trabalharmos em termos do aumento de produtividade no trabalho e da qualidade de vida de produzirmos?
Acredito que este tempo de pandemia, quando temos sido obrigados a trabalhar de casa, evitando locomoções diárias e cansativas e consequentemente ganhando horas de vida e convívio com nosso núcleo familiar, possa fazer com que gestores e colaboradores repensem a atual dinâmica de trabalho. Parece-me que esta vivência num sentido amplo, repleta de sentimentos e reflexões, nos tornará necessariamente diferentes a ponto inclusive de refletirmos sobre a necessidade de um maior equilíbrio entre a vida profissional e pessoal, sem que isto represente perda de produtividade. Muito pelo contrário.
Felizmente fomos brindados com o acesso à tecnologia (celular e internet) que se apresenta como essencial aliado nesta nova e inusitada experiência. Que fique claro que de forma alguma ela substitui a necessidade de contato presencial, olho no olho, mas com certeza isto pode ser flexibilizado com razoabilidade e sem prejuízo às obrigações e relações profissionais. Sem qualquer planejamento, estamos percebendo que é possível produzir sem o imaginado divisor físico e temporal. Mas será o home office a solução ou apenas uma passagem para algo que pode ser ainda mais produtivo para inúmeras funções?
Voltando quase vinte anos na minha vida, recordo-me de quanto compartilhei minhas funções do mundo corporativo com aquelas que abracei por determinado período e que me obrigavam a vestir vários chapéus num mesmo dia. De executivo de hospital a presidente de sindicato patronal de hospitais, concomitantemente com a função de diretor de uma outra entidade de hospitais sediada em uma outra cidade, a conselheiro de um órgão de capacitação de uma determinada federação, todas no mesmo período de tempo e com agendas que muitas vezes se confundiam num mesmo dia. Recordo-me de comentar isto com meu pai num determinado momento e escutá-lo dizer de forma brincalhona, mas repleta de mensagem: “Por incrível que pareça temos algo a aprender com o que Fernando Beira Mar e Osama Bin Laden têm em comum!” Assistindo a minha cara de espanto e curiosidade, ele emendou: “Para ambos o escritório é onde eles estão.”
Foi aí que caiu a ficha de que eu já praticava isto a partir do que se passou a chamar anywhere office, quando se trabalha de qualquer lugar, utilizando-se o valioso apoio da internet. Para muitos o alcance desta possibilidade ainda se restringe a podermos trabalhar fora da empresa, quando na realidade acredito que ficará mais claro que é perfeitamente possível trabalhar de onde se estiver.
Curioso pensar que passo a valorizar isto ainda mais sem que os impactos me tenham sido tão disruptivos quanto para a maioria das pessoas. Afinal, eu já trabalhava fora do ambiente de trabalho, mas não obrigatoriamente e integralmente em casa. O fato é que nunca achei que tivesse que estar preso a um local físico para poder produzir. Precisamente nos últimos onze anos de minha vida profissional tenho trabalhado invariavelmente em três contextos distintos. Meus projetos mudaram neste período, mas a dinâmica é muito semelhante.
Quando estou em São Paulo, estou “na rua” encontrando-me com prospects e clientes na maior parte do tempo. Via de regra, frequento o escritório em um ou, no máximo, dois dos três dias em que estou na cidade. Nos demais dias trabalho remotamente do Rio de Janeiro, onde reside minha família. Foi este o ponto ideal que encontrei para mim, conciliando o trabalho em equipe com a relação com clientes e o convívio com meus filhos. Posso afirmar com muita tranquilidade que o resultado prático disto tudo foi mais qualidade de vida e produtividade, ainda que, não negue, muitas vezes às custas de deslocamentos frequentes que, na prática, eu preferia enxergar como mudança de paisagem. Em outras palavras, o presenteísmo pode ser praticado a centenas de quilômetros por mais surreal que isto possa parecer.
Do ponto de vista pessoal acredito que, preenchidas os pré-requisitos em função do cargo que se tem e da intensidade em que se demanda em termos de interação presencial com equipes e clientes, trabalhar remotamente, seja em casa, num café ou mesmo num parque próximo de onde residimos (onde pode-se inclusive se escutar o cantar dos pássaros que citei no início deste texto), pode ser muitíssimo mais produtivo. Além disso, pode ser menos custoso também para a empresas e colaboradores, evitando despesas inerentes a translado e alimentação fora do ambiente domiciliar, entre outros custos intangíveis já mencionados. Naturalmente que isto precisa ser desenhado e pactuado com regras que contribuam para a disciplina e responsabilidade de forma a não prejudicar a produtividade pactuada.
O fato é que por necessidades e até por oportunidade, aprendi a também levar em consideração minhas necessidades pessoais e emocionais como parte integrante da minha produtividade enquanto profissional. Foi por este motivo talvez que as cenas que citei no inicio deste artigo tanto mexeram comigo. Além de me fazerem pensar sobre minha própria história, me fazem pensar que esta mesma dinâmica mais humana necessariamente será ampliada para tantos outros. E irá muito além do home office que, neste momento, se apresenta como uma passagem obrigatória.
Sempre tive muito claro que antes de ser um profissional sou um ser humano. Aliás, talvez possa dizer isto de outra forma: estou um profissional, mas jamais deixo de ser um ser humano. Como sabiamente disse o filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955) “eu sou eu e a minha circunstância e se não a salvo, não salvo a mim mesmo”. Esta união é indissociável, não sendo possível compreender um sem o outro.
Acredito que este grande ctrl-alt-del na humanidade, fruto do conoravírus, que nos fez inverter abruptamente o pêndulo da nossa relação com o trabalho, passando do isolamento na empresa (office) para o do isolamento em casa (home office), talvez seja apenas uma passagem. Afinal, no contexto atual também não atingimos o ponto de equilíbrio. Para muitos, o anywhere office será o caminho do meio a ser perseguido para o bem das empresas e das pessoas.