Entrevista: Os rumos da Gestão da Saúde Corporativa no Brasil: visões e propostas | Arquitetos da Saúde
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Entrevista: Os rumos da Gestão da Saúde Corporativa no Brasil: visões e propostas

Os Arquitetos da Saúde, Adriano Londres e Luiz Feitoza, fazem uma análise sobre as visões, atuações, convergências e divergências dos atores que compõem o sistema de saúde suplementar no Brasil e fazem propostas para que o benefício saúde seja de fato viável para todos. São as oportunidades trazidas pela crise que nos últimos anos diminuiu em mais de três milhões o número de beneficiários e trouxe o despertar das empresas, permitindo uma guinada em nova direção na construção de um sistema com foco, enfim, na atenção primária à saúde, mais leve e efetivo. São palavras-chave: empoderamento, mudanças de atitude, novos modelos, responsabilidades, repactuação, redução de custos desnecessários, gestão. Sobreviver depende de trilhar por um caminho sem volta, mais simples, útil e valoroso. Só nos resta mudar ou mudar.

Como você vê a Gestão da Saúde Corporativa hoje no Brasil?


Feitoza:
Historicamente as operadoras resumem a Gestão de Saúde Corporativa basicamente em programas de prevenção e gestão de doenças. Os corretores focam no prêmio e no reajuste, os prestadores de saúde, que vendem algum tipo de serviço às empresas, atendem “partes” desta gestão sem necessariamente integrar ou ter uma visão ampla do benefício. As empresas, que são as maiores interessadas, têm posturas distintas. Algumas delegam totalmente a gestão aos atores da cadeia já citados aqui. Outras chegam a montar departamentos multidisciplinares com médicos, atuários, enfermeiros ou exigem de seus corretores esta estrutura. As mais arrojadas montam ambulatórios próprios, academias de ginástica, etc. A reflexão que faço aqui é que a Gestão da Saúde Corporativa tem muito mais amplitude do que prevenção e gestão de doenças. A missão de um gestor de benefícios é definir ações que garantam acesso ao cuidado com a saúde e políticas com critérios, promover um custeio viável à empresa e aos empregados, primar pela continuidade a longo prazo, definir qual benefício atende melhor sua população e saber qual a demanda por saúde desta população. Esta visão integral precisa agregar competências e visões que não são apenas a da saúde, mas também noções financeiras, legais, estatísticas, atuariais, negociação e comunicação. Se pensarmos no RH como principal responsável hoje pela gestão dos benefícios, uma assessoria isenta e que faz um corpo a corpo mais técnico e estratégico com este profissional pode criar um ambiente de indicadores e metas que entreguem de fato uma visão total do benefício.

Adriano: Com o passar dos anos e, de forma mais acelerada após a crise econômica brasileira com a qual perdemos mais de três milhões de beneficiários, as empresas se viram obrigadas a mudar sua postura diante o plano de saúde de seus colaboradores. A pressão sobre a atividade econômica como um todo gerou desemprego e comprimiu margens culminando com a necessidade de um novo olhar sobre os desafios existentes. Neste contexto, enquadra-se a Gestão de Saúde Corporativa, onde empresas de médio a grande porte se convenceram de que a sua responsabilidade sobre a saúde dos colaboradores ia muito além do mero pagamento de um boleto de altíssimo valor. Entenderam que não cabia mais acatar, de forma passiva, os repasses das ineficiências do sistema como um todo, refletidos em reajustes muito maiores do que seriam possíveis. Portanto, para muitos a crise gerou oportunidades e neste contexto várias empresas começaram a questionar o real valor de todos aqueles com os quais se relacionam, sejam eles corretores, operadoras e mesmo prestadores de serviços médico hospitalares. As empresas passaram a entender que, como financiadores efetivos de seu plano de saúde corporativo, tinham que mudar a postura. A repactuação na relação com corretores (com reduções de comissões ou alteração da forma de pagamento para um valor fixo), o repensar no modelo de risco (para empresas de determinado porte não faz sentido permanecer com o modelo de pré-pagamento), a revisão do desenho do benefício e políticas de recursos humanos, a estruturação de uma área assistencial quando cabível para dar suporte à gestão, estão entre as inúmeras medidas adotadas por empresas que despertaram. Ainda estamos no começo, é bem verdade, mas é um caminho sem volta visando mais valor na entrega de serviços em um contexto de incentivos alinhados. Redução de custos, em última análise, é consequência.

Como as empresas podem obter resultados gerindo o próprio benefício, o apoio dos colaboradores no cuidado com a própria saúde e as principais dificuldades para que isso se torne realidade no Brasil?

Feitoza: As empresas andam muito desconfiadas e decepcionadas com o que se convencionou ser o resultado em gestão de benefício. O que seria resultado? Que a gestão de crônicos reduzisse o custo nominal de pré-pagamento? Que o reajuste anual seja igual a zero? É preciso colocar os pés no chão e fazer um diagnóstico realista. Apenas a própria empresa é a responsável pelo seu sucesso ou fracasso na gestão. Delegar responsabilidade sem “delargar” da estratégia. A gestão do próprio resultado na gestão é a expertise de alocar recursos certos com base num bom conhecimento de causa. Já o apoio dos colaboradores está num pacto de longo prazo. Uma discussão ampla e sincera sobre as questões do benefício pós-emprego, dos limites da empresa para o patrocínio do benefício e qual a participação do colaborador e sua família na sustentabilidade do plano. Já no âmbito preventivo, a participação está em demonstrar ações que de fato cuidam da saúde do colaborador sem parecer que é um cerceamento do seu direito de utilização, conforme rol da lei 9656. Está no desprendimento da empresa em criar programas que tenham o único objetivo de cuidar das pessoas sem colocar uma meta financeira a curto prazo. Resultados financeiros vêm por meio de políticas de benefício. Resultados de saúde vêm do cuidado contínuo e a longo prazo. Daí vem o engajamento das pessoas. As dificuldades hoje estão justamente na visão distorcida de que qualquer ação em saúde tem que ter lógica de rol. As pessoas acabam percebendo isto de alguma forma e cria-se desconfiança. É preciso trazer legitimidade no discurso do cuidado.

Adriano: O primeiro passo está na premissa de que a empresa assuma a sua corresponsabilidade neste processo, não delegando a sua totalidade a terceiros. Em seguida, a recomendação é fazer um amplo diagnóstico técnico de forma a entender o momento atual da empresa em relação à Gestão de Saúde Corporativa e às diversas oportunidades existentes, de forma compatível com a sua política de benefícios. A partir daí é possível traçar um mapa de ação com recomendações, prazos e benefícios esperados alinhando expectativas entre as partes. Quanto ao apoio dos colabores, é fundamental entender a cultura da empresa para traçar um necessário plano de comunicação que os atinja. É muito comum as empresas pecarem neste sentido, comprometendo os resultados esperados. Este plano deve ser claro, transparente e envolver diversos meios de comunicação e informações diretas e específicas quando for o caso. Fazendo uma analogia, costumo dizer que as empresas devem deixar o banco de passageiros do avião e assumir a função de copiloto. Os resultados só serão atingidos se a empresa contribuir para a compreensão dos colaboradores e dependentes de que a estes cabe a função da pilotar o processo de gestão de suas saúdes. Acredito também na definição de incentivos adequados que devem ser alinhados em torno do projeto estratégico de cuidar da saúde, o que é fundamental na busca de resultados sustentáveis.

O que as empresas podem fazer para apoiar na transformação da estrutura da saúde hoje, focando menos na doença e mais na saúde?

Feitoza: O foco na saúde sempre será mais importante do que a gestão da doença, mas é preciso entender que as duas demandas sempre existirão. É preciso cuidar da doença porque os fatores que geram certas patologias são diversos, inclusive de pré-disposição genética, e fazer prevenção porque muito pode ser evitado com hábitos saudáveis. Identificar os fatores de risco, os comportamentos típicos de doença crônica, enfim, se antecipar ao máximo para prover recursos e criar programas que sejam assertivos. No mais, as empresas ainda podem ajudar na transformação da estrutura repensando sempre a forma de contração do benefício saúde. Há uma tendência, por exemplo, das grandes empresas se aproximarem dos grandes prestadores de serviço que sejam representativos para a população assistida e proporem algum nível de contratação direta.

Adriano: Estruturas de saúde se justificam ou não dependendo de inúmeras variáveis, entre as quais o tamanho da empresa, o índice de “turnover”, a concentração de colaboradores, a idade média dos mesmos, a área geográfica, etc. Para cada caso, um caminho. Em determinados casos cabe às empresas estruturarem uma área assistencial onde um médico lidera o processo de gestão como um maestro em uma orquestra. A definição dos instrumentos vai depender do diagnóstico.

A saúde suplementar, da forma que está estruturada hoje no Brasil, sobreviverá por quanto tempo? Qual o cenário?

Feitoza: O sistema suplementar foi montado para produzir. Este é o maior problema. O modelo “fee for service”, com remuneração por procedimento realizado, é insustentável por não gerar racionalidade. Quem paga quer conter e quem presta quer produzir. Isto é a causa da grande desconfiança entre os atores. E o resultado? As empresas arcando com um custeio que dobra de valor a cada quatro ou cinco anos. Outra questão é o fato da lei 9.656/98 criar uma garantia sem teto. É o único seguro do mundo que não tem teto. Foi feito para ser inexequível financeiramente a longo prazo. Quanto tempo sobreviverá? Sem mudanças estruturais, não sei. Acho que já passou dos limites o teste sobre a resiliência dos empregadores, que respondem por 2/3 dos beneficiários. Mas eu sou otimista quanto ao desfecho disso e não acredito que o sistema quebrará. Afinal, é um mercado imenso com aproximadamente R$ 180 bilhões de prêmio gerado por ano e que sustenta praticamente toda a rede de hospitais e laboratórios privados. Talvez o caos obrigue repensar o marco regulatório, as parcerias de ganha/ganha, o risco compartilhado e a sustentabilidade. Para o bem de todos, principalmente dos beneficiários, espero que não tenhamos que chegar em uma situação tão limítrofe.

Adriano: Os números falam por si. Como está (des)estruturada hoje, a saúde suplementar caminha ladeira abaixo. Independentemente da crise que tirou mais de três milhões de beneficiários nos últimos anos, os atores como um todo não foram capazes de otimizar a geração de valor, destruído ano após ano com o sistema focado em doença, hospitais e tecnologia, pautados por incentivos desalinhados de curto prazo. Felizmente, com o despertar das empresas, começamos a ver uma guinada em outra direção, que sinaliza a construção de um sistema tendo de fato o foco na atenção primária à saúde, a relação médico-paciente e estruturas mais leves e efetivas de atenção, ou seja, o cuidado certo no lugar certo. Entre outras tantas medidas, temos o empoderamento das empresas que financiam o sistema, a disponibilização de sistemas de informação que contribuam para a melhor gestão e a correção do sistema de incentivos. Portanto, só nos restam duas alternativas: ou mudamos ou mudamos.