Há muito tempo venho refletindo sobre o porquê das operadoras de planos de saúde me fazerem recordar um verso da música “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque (1978) que diz: “ joga pedra na Geni, joga pedra na Geni, ela é feita pra apanhar, ela é boa pra cuspir…”. Afinal, é razoável concluir que o principal alvo do canhão de críticas direcionado para a saúde suplementar são as operadoras. Já sei, muitos dirão, elas merecem, afinal extorquem os consumidores com reajustes absurdos, comprometem seus orçamentos cada vez mais, ganham rios de dinheiro, negam procedimentos, exageram nos percentuais de reajustes de preços nas últimas faixas etárias e assim por diante.
De fato, operadoras têm a sua parcela de responsabilidade quanto à parte das percepções acima citadas. Mas, de outro lado, entendo que existem preconceito e interpretações subjetivas enraizadas, bem como um enorme grau de desconhecimento a respeito de aspectos técnicos que regem a atuação das operadoras. Vejamos alguns exemplos e hipóteses do que pode estar por de trás do frequente sentimento de desconfiança e insatisfação:
1. Eu e você pagamos por um plano de saúde contrariados. Nossa constituição cidadã, em seu artigo 196, reza que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas…”. Mas a teoria na prática é outra, na medida em que aproximadamente 47 milhões de brasileiros, por motivos que não me cabe julgar, não confiam que estarão seguros com a cobertura exclusiva do Sistema Único de Saúde (SUS). Caso contrário, não teriam por que pagar duas vezes (sim, pagamos impostos) para ter direito a serviços de saúde. Me pergunto o quanto que este incômodo, quase que inconsciente, pode contribuir com parte da insatisfação que temos em relação às operadoras de planos de saúde. É como se elas fossem um mal necessário para muitos de nós;
2. A saúde é o nosso maior bem, tem valor imensurável e temas adjacentes a ela naturalmente nos trazem uma carga subjetiva e emocional. Compreensível, com certeza. E aí, quando temos uma demanda de saúde, julgamos ser um direito inalienável, muitas vezes nos esquecendo que, contrato algum de plano de saúde cobre tudo o que possamos vir a necessitar. Por lei, a cobertura segue o que está previsto no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Assim como sistema de saúde algum do mundo, incluindo o nosso próprio SUS, é capaz de suprir todas as nossas necessidades. Isto é uma afirmação racional, mas obviamente que do ponto de vista emocional nos causa um sentimento de injustiça, principalmente quando estamos na situação de paciente (usuário) e não de cidadão e/ou beneficiário (pagador), onde a demanda pode ser por algo não previsto em contrato;
3. Um importante driver do aumento de custo em saúde é a demografia. Estamos mais velhos (nossa pirâmide etária mudou) e vivendo mais. E isto é excelente! Como sociedade temos feito um ótimo trabalho na ponta da “longevidade”, mas ainda não equacionamos o problema do financiamento do custo associado a esta maravilhosa conquista. E isto, consequentemente, também está refletido nos reajustes dos planos de saúde;
4. De outro lado também é verdade que parcela destes aumentos tem relação direta com nossa incapacidade coletiva (aqui incluo consumidores, operadoras, corretoras, médicos, hospitais, distribuidores, indústria de insumos, medicamentos e equipamentos etc.) de gerar mais saúde para os beneficiários e eficiência para o sistema de saúde suplementar. Ocorre que, muitos de nós desconhece o que ocorre “da porta para dentro da operadora” ou, melhor dizendo, nas demais interfaces de relacionamentos ao longo da cadeia. E aí, por ignorância (no seu sentido conotativo), depositamos quase que exclusivamente a nossa insatisfação quanto ao comportamento de custos exclusivamente naqueles que materializam esta incompetência coletiva: as operadoras. Por um motivo simples. São elas que boletam esta conta para nós, beneficiários;
5. Nos frustramos porque grande parte das operadoras de planos de saúde efetivamente não cuidam da nossa saúde, se limitando a pagar as despesas de nossas contas de doenças. Verdade. Mas quem efetivamente cuida da nossa saúde, inclusive nós próprios enquanto beneficiários, assim como as empresas que concedem planos de saúde a seus colaboradores? Salve exceções naturalmente, a cadeia inteira é remunerada por produzir serviços e não por cuidar de saúde. Coletivamente permitimos que o dinheiro se tornasse o centro do sistema e não o paciente. Mas a culpa deste equívoco parece ficar quase sempre apenas na “conta” das operadoras. Isto lhe parece razoável?
6. Inconscientemente talvez, nos revoltamos pelo fato de que o cuidado com a nossa saúde (ou seria melhor, doença) se traduza num negócio. Um absurdo, muitos dirão. Discordo. Sim, operadoras em sua maioria são atividades econômicas com fins lucrativos, assim como hospitais, centros de medicina diagnóstica, indústrias relacionadas ao setor e assim por diante. Não há absolutamente nada de errado em se aferir lucro nestas atividades, desde que isto ocorra como consequência natural de uma adequada prestação de serviços aos pacientes. E sabemos sim que isto nem sempre acontece. O erro está aqui muito mais do que no fato de eventualmente serem negócios com fins lucrativos. Pensemos sobre isto;
7. Via de regra, operadoras não salvam nossas vidas, não tratam de nossas enfermidades. São burocráticas e impessoais. Quem faz isso são médicos e demais profissionais de saúde, assim como hospitais que nos acolhem. Com estes acabamos criando um sentimento de gratidão na medida em que, quando mais precisamos, são eles com os quais nos relacionamos. As operadoras, achamos que restam aspectos burocráticos de autorização, reembolsos, emissão de boletos etc. Onde já se viu ter qualquer gratidão por elas? Esquecemos, muitas vezes, que foram as operadoras que democratizaram o acesso à medicina que nos faz desejar ter um plano de saúde;
8. Planos de saúde são regidos pelo sistema de mutualismo, onde muitos pagam para poucos usarem. Esta é a natureza jurídica dos planos de saúde. Não se trata, portanto, de uma poupança da qual sacamos recursos caso venhamos a precisar. Precisamos nos lembrar que um dia chegará a nossa vez de nos “beneficiarmos” deste princípio. Este é um aspecto fundamental frequentemente desconhecido pelos beneficiários. Portanto, o fato de pagarmos anos a fio não nos dá o direito de usar o plano de forma indiscriminada. Isto voltará contra nós e a coletividade;
9. É verdade que algumas operadoras apresentaram resultados excepcionais durante o segundo semestre da pandemia. Mas são poucas e isto não reflete a base histórica da maioria. Analisando-se as 15 maiores operadoras, a margem líquida destas, já descontando o resultado de aplicações financeiras em função das altas reservas técnicas, está em torno de 1,5% ao ano. Ruim, não? Isto sem falar na relação de mais de uma centena delas que se encontram em direção fiscal, técnica e/ou portabilidade especial ou extraordinária (quase o mesmo que dizer que estão em preocupante situação financeira). Via de regra, as margens das operadoras estão entre as piores da cadeia de saúde, muito abaixo daquelas de inúmeros hospitais (em rede ou mesmo não), centros de medicina diagnóstica e a indústria de insumos e medicamentos. O fato de faturarem muito não quer dizer que lucram muito. Se é para questionarmos seus resultados, me parece razoável que façamos em relação a todos indiscriminadamente;
10. Além de pagarmos uma alta mensalidade, muitas vezes ainda temos que pagar a tal da coparticipação em consultas e exames. Um verdadeiro absurdo, muitos dirão. Errado! A existência de coparticipação, além de pedagógica na medida em que faz como que aqueles que usam serviços também pensem com o chapéu (ou seria, bolso?) de quem paga, reduz o custo da nossa mensalidade. Não se paga a mais, portanto. Simplificando, seria como pagar 3 de mensalidade mais 1 de coparticipação ou 4 de mensalidade. Simples assim;
11. Planos são insensíveis pois pagamos a vida inteira e quando chegamos próximo dos 60 anos onde nossa remuneração já não costuma ser a mesma, os planos vêm com aumentos abusivos na última faixa etária com a clara mensagem de que estamos sendo assaltados e levados a abandonar o plano. Não procede, o Estatuto do Idoso, e não as operadoras, engessou o limite de precificação por faixa etária, ao obrigar as operadoras a precificarem os riscos inerentes aos nossos próximos anos de vida na última faixa acima dos 59;
12. Isto sem falar nos reajustes das demais faixas etárias. Naturalmente ficamos angustiados na medida em que é crescente a dificuldade de continuarmos arcando com eles, ainda mais porque este mesmo aumento caminha na direção contrária de nossa capacidade de pagamento, seja por renda seja pelo envelhecimento. Dilema cruel de fato. Mas, na prática, se todos fossem precificados igualmente, os mais jovens abandonariam os planos, deixando apenas os mais idosos (já estou na oitava de dez faixas, que fique claro), o que inviabilizaria o sistema. Existem projetos para corrigir este conhecido e preocupante descasamento a partir da criação de algo como um VGBL saúde onde parte dos recursos pagos durante os anos anteriores seriam regidos sobre o modelo de capitalização, podendo ser resgatados para ajudar no pagamento nos anos de maior idade e menor renda. Mas, até onde sei, dormem nas gavetas dos órgãos responsáveis por esta importante decisão;
13. As críticas dirigidas ou concentradas nas operadoras também me parecem se dever ao fato (e isto é uma coisa boa) de que são o elo mais transparente da cadeia de saúde suplementar. Operadoras publicam balanços periodicamente e tem seus números examinados e criticados por todos, mesmo com as taxas de retorno baixas como demonstrado. Já os demais elos da cadeia, com algumas exceções, não têm seus números expostos como as operadoras. Algo para se pensar.
Resumindo, que fique claro que tenho minhas críticas às operadoras de planos de saúde (como já registrei em vários textos anteriores), assim como também as tenho em relação aos demais elos da cadeia de saúde. Somos todos vítimas e culpados da destruição de valor deste sistema nesta última década, que levou a explosão de custos e restrição de acesso. Uma verdadeira marcha da insensatez fruto da nossa inércia destrutiva coletiva. Mas isto não impede de colocarmos alguns “pontos nos is”, desmistificando crenças, esclarecendo conceitos, trazendo transparência, abordando limites e dosando responsabilidades. Naturalmente que não quero aqui questionar a indignação do leitor quanto à resultante sistêmica das mazelas do setor. Eu também as tenho. Mas me parece mais adequado concluirmos que, no final do dia, a Geni, somos todos nós!