A década recém iniciada apresenta inúmeros movimentos e iniciativas por parte de diversos elos da cadeia de saúde suplementar, que trarão grandes desafios e oportunidades para o setor como um todo. É preciso parar para analisar e refletir sobre seus impactos adequando estratégias neste sentido.
Há praticamente dois anos publiquei o artigo “Quem sairá na frente da retomada de venda de planos de saúde individuais?” Desde então vimos o surgimento de operadoras voltadas para este público entre as quais Alice, Leve e QSaúde. Nesta mesma linha outras tantas operadoras, entre as quais a recém-criada Sami, começaram a oferecer planos para microempresários a partir de 1 ou 2 vidas. Muito além de apenas uma oferta de planos para aqueles que não se qualificam em outros modelos de contratação, estes novos entrantes têm se posicionado como plataformas de saúde sinalizando estarem comprometidos com o cuidado com a saúde.
Nesta linha de healthtecs, outras tantas iniciativas têm surgido, incluindo desde soluções de inteligência artificial e big data a outras de telemedicina, saúde mental e gestão de crônicos. Segundo o site da Conexa Saúde, “os produtos baseiam-se na aplicação de conhecimentos e habilidades em forma de dispositivos, medicamentos, vacinas, procedimentos e sistemas desenvolvidos para resolver um determinado problema de saúde e melhorar a qualidade de vida.” O crescimento deste segmento chama atenção. Segundo o portal Inovativa Brasil, “de janeiro de 2020 até fevereiro de 2021, a Associação Brasileira de Startups (Abstartups) registrou 69 novos cadastros de startups da área da saúde.”
Num cenário de restrições econômicas nos últimos anos, ao mesmo tempo em que a variação de custos-médico hospitalares (VCMH) medida pela consultoria Arquitetos da Saúde foi de 106,02% de 2014 a 2019, contratantes de planos de saúde têm recorrido de forma crescente a produtos de operadoras verticalizados. Segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), juntas Hapvida e GNDI “adicionaram 2,3 milhões de beneficiários organicamente entre março de 2016 e setembro de 2020”, indo na contramão do mercado que praticamente não cresceu neste período. Em resposta a este movimento, outras tantas operadoras, verticalizadas ou não, começaram a oferecer planos mais restritos com redes diferenciadas de prestadores e, muitas vezes, com propostas de algum grau de coordenação do cuidado.
Já por parte de grandes prestadores de serviços médico-hospitalares, observamos nos últimos meses o IPO da Rede D’Or que foi logo seguido pelo re-IPO do DASA e da Rede Mater Dei de Saúde. Outros estão por vir.
As mudanças estão por todos os lados e já estão chacoalhando o até então histórico marasmo na saúde suplementar. Mas é curioso observar nesta nova paisagem a ausência dos contratantes de planos de saúde empresariais que representam dois terços dos beneficiários. Será que continuam anestesiados, inclusive pelo efeito da queda de sinistralidade no último ano em função da pandemia, ainda que estes dias estejam contados?
Em junho de 2019 publiquei o artigo “Está mais do que na hora de fundar a Associação de (Grandes) Patrocinadores de Saúde (APS)” alertando para a importância deste elo da cadeia se organizar do ponto de vista de sua representação. A reinante ausência dos contratantes diante do protagonismo que precisam exercer no sentido de efetivamente cuidar da saúde de seus colaboradores e contribuir para mais eficiência no setor está refletida nos resultados da edição de 2020 da Pesquisa de Gestão de Saude Corporativa, realizada conjuntamente pelas entidades Aliança para a Saúde Populacional (ASAP) e Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH Brasil). Vejamos:
- Para 71% das empresas os custos subiram mais que 5% no último ano;
- O aumento de repasse de custo ao colaborador (coparticipação) foi a ação mais utilizada pelas empresas para conter custos em saúde;
- 59% das empresas têm sinistralidade acima de 70%.
- 52% das empresas não possuem programas estruturados para gerenciamento de grupos de risco;
- 66% das empresas não possuem programa de estímulo à alimentação saudável;
- Apesar da saúde corporativa ser o segundo maior orçamento de RH, a gestão dos seus programas ainda é delegada aos cuidados de pessoas com menor poder de decisão e influência: 39% são coordenadores ou analistas e apenas 12% são diretores.
Como a própria pesquisa aponta em suas conclusões, “o desenvolvimento da gestão de saúde mostra-se ainda muito incipiente considerando-se os resultados e expectativas quanto ao futuro.” Por fim cita que, “a alta administração precisa se comprometer mais efetivamente com a gestão de saúde, elevando o nível de suas estratégias visando à melhoria de resultados concretos nos cuidados com a saúde.”
Outra forma de constatarmos a omissão dos contratantes de planos de saúde está traduzida na sua pífia participação em temas regulatórios, mesmo mediante o estímulo dado pela ANS nos últimos anos. Sobre o prisma da participação em consultas públicas (CP) da ANS observamos, por parte destes, menos de 1% de contribuições nas duas últimas atualizações do rol de procedimentos de 2018 e 2020. Para citar apenas outro exemplo (entre tantos), não constam contribuições para fins da consulta pública 64 que tratou da contratação de plano coletivo empresarial por empresário individual.
Números falam por si. Mais do que vítimas, com raras exceções, contratantes de planos de saúde empresariais têm sido cumplices dos custos galopantes dos planos de saúde nos últimos anos, seja na ausência de sua própria gestão, seja na omissão quanto à sua representação em temas regulatórios, apenas para citar dois exemplos. Se os desafios (e oportunidades também, que fique claro) já eram enormes, o que dizer sobre alguns dos movimentos recentes de mercado que precisam ser compreendidos e analisados? Entre eles, apenas para citar alguns poucos:
- Qual será o impacto para os beneficiários de planos de saúde, tendo em vista a crescente concentração e mercantilização de prestadores de serviços médico-hospitalares e operadoras de planos de saúde?
- Por que as empresas contratantes não medem de forma técnica e isenta a sua própria VCMH uma vez que este índice baliza um importante componente do reajuste anual e revela importante subsídio para a gestão de saúde?
- Como empresas contratantes podem medir de forma isenta e técnica resultados de healthtecs que têm surgido com propostas de gestão em saúde?
- Por que empresas contratantes não exigem, de corretores e operadoras de planos de saúde, dados mais estruturados e indicadores inteligentes de gestão de sua população ao invés de se restringirem à sinistralidade de sua apólice?
- Por que empresas, de uma forma geral, não cobram da ANS a rediscussão das segmentações assistenciais previstas de forma a também considerar produtos mais acessíveis que contribuam para o crescimento do setor?
Pois bem, de uma forma ou outra temos visto muitos movimentos ao longo da cadeia de saúde, mas afinal, onde está Wally, o contratante de planos de saúde? Independentemente de suas particularidades, por que contratantes de planos de saúde empresariais insistem em não se organizar e dar voz à importância que têm neste grande e necessário redesenho da saúde suplementar? Parece não se darem conta de que são aqueles que financiam a imensa parte do sistema de saúde suplementar e, portanto, no mínimo têm a obrigação de contribuir para elevar a régua de eficiência do sistema como um todo. Será que nem a pandemia com todos os impactos sobre a saúde dos colaboradores e da população em geral os faz pensar a respeito?