Recentemente vimos surgir críticas à verticalização na saúde, modelo pelo qual operadoras de planos de saúde reúnem sob sua gestão e, com incentivos pautados por seus interesses, os serviços de atendimento aos pacientes. No contexto de restrições econômicas de empresas e indivíduos que contratam planos de saúde, foi este modelo que se destacou nos últimos anos tendo crescido mesmo no cenário de redução de aproximadamente dois milhões de beneficiários desde 2014. Foi este mesmo modelo que despertou grande interesse por parte de investidores a partir de abertura de capital de algumas destas empresas. Neste contexto, podemos dizer inclusive que as verticalizadas vêm vencendo a “batalha de preços” na saúde suplementar. Mas isto não garante dizer quem serão os vencedores do que chamo de “guerra de valor.” Cedo para dizer que sim. Cedo para dizer que não.
Há pouco mais de um ano escrevi o artigo “A Verticalização é o destino ou um dos caminhos possíveis?” Na ocasião citei: “…gostaria de fazer uma reflexão sobre a verticalização à luz do tão falado e ainda pouco praticado valor em saúde. Partindo-se da equação onde se tem a experiência do paciente e o desfecho clínico (resultados subjetivos e objetivos que interessam ao paciente no final do dia) como numerador e custos (aquilo que mais interessa ao financiador) como denominador, me parece possível concluir que ainda é precoce afirmarmos que a verticalização é a melhor resposta em termos de valor em saúde para o paciente.
Assim como, que fique claro, também não é possível concluir que os demais modelos de operadoras o sejam. Simplesmente por ainda não termos, por exemplo, indicadores de desfechos disponíveis de uma forma geral. Como bem disse Clemente Nobrega em uma publicação no LinkedIn, ‘quem paga sabe quanto custa, mas não sabe os desfechos pelos quais está pagando…não se pode gerar valor sem aferir desfechos.’ De fato, ainda não temos evidências de que um modelo é melhor que o outro sob a ótica do cuidado.”
Ou seja, neste quesito, não são apenas as operadoras de planos de saúde verticalizadas que estão expostas. Na prática, estamos todos, operadoras de planos de saúde e prestadores de serviços médico-hospitalares, vulneráveis. Afinal, onde estão os resultados que interessam aos pacientes além do preço que eles ou suas empresas pagam? Eles simplesmente não existem. Ou se existem não são divulgados. E se existem e são divulgados, não estão levando a um impacto esperado. Além do mais, há uma outra questão: estão sendo apurados de forma isenta e técnica? Indo além, os desfechos apurados se prestam a avaliações comparativas de performance? Concluindo, o telhado de vidro é de todos!
Este tema me faz recordar uma passagem enquanto trabalhava para um tradicional hospital de São Paulo. Lá se vão quase 10 anos. Recordo-me de uma conversa com renomados cardiologistas que enalteciam a tradição e os diferenciais da instituição na área de cardiologia. Foi aí que perguntei, com muito cuidado para não ferir egos, “com base em quê podemos afirmar de forma objetiva, técnica e isenta que somos melhores que as demais instituições hospitalares nesta especialidade?” Silêncio….
É óbvio que não estava colocando em xeque a inquestionável reputação dos médicos que ali trabalhavam há décadas. E muito menos da instituição para a qual trabalhava à época. Mas a provocação que quis deixar era que tínhamos que ir além da legítima reputação subjetiva, passando a pavimentar o caminho para a construção isenta e técnica de indicadores objetivos de qualidade assistencial. Em tempo, a certificação internacional mantida pela instituição em questão, assim como por várias outras também reconhecidas, era de fato uma conquista nesta direção. Mas apenas em parte, afinal, até os dias de hoje, basta perguntar a parentes, vizinhos e conhecidos se estes sabiam (ou ainda sabem) do que isso se trata.
Pouco tempo depois, já trabalhando para outra empresa, representei a instituição num evento organizado por um dos mais renomados hospitais do país. Como reflexão final da minha fala, deixei o registro da importância de medirmos e divulgarmos indicadores de qualidade para indivíduos e empresas que contratam planos de saúde. Ao fim do evento, fui abordado pelo diretor médico da instituição que me entregou um pen-drive com informações neste sentido. Foi aí que o perguntei por que as referidas informações ainda eram desconhecidas? Se as tinham, por que não as divulgavam amplamente? Silêncio….
Voltando ao tema, é importante registrar que devemos ter muito cuidado para não satanizarmos o modelo das verticalizadas. Para aqueles que o questionam, pergunto se estes mesmos questionamentos também não deveriam ser aplicados aos modelos das operadoras não verticalizadas. Afinal, se de um lado existe o potencial conflito de interesse pela subutilização, de outro, no modelo não verticalizado há o potencial conflito de interesses pela super utilização. Um potencial conflito de interesse, a meu ver, não deixa de ser um conflito de interesse.
Em tempos de pandemia, vimos a impressionante velocidade com que a indústria farmacêutica foi capaz de desenvolver vacinas que têm comprovadamente nos protegido do coronavírus. Em paralelo, ainda que conhecido há muito mais tempo, temos sido coletivamente muito pouco eficazes na produção e aplicação de “vacinas” (indicadores de valor em saúde, a “vacina de valor”) que protejam pacientes do vírus de um sistema que demonstra ter o dinheiro em seu centro.
Afinal, que mensagem vimos passando aos beneficiários de planos de saúde neste sentido? Diariamente vimos matérias que enaltecem exclusivamente indicadores financeiros e quantitativos de operadoras e prestadores de serviços médico-hospitalares. Ebitda para cá, ROL para lá, lucro líquido aqui, margem operacional ali, prêmio de um lado, sinistro de outro, quantidade de consultas aqui, de internações ali, e assim por diante. E onde estão as informações relacionadas ao numerador da equação de valor que seriam vitais para compor o processo decisório de quem faz a opção por uma operadora ou hospital, por exemplo?
Em tempo, e antes que eu venha a ser mal interpretado, que fique claro que não há nada de errado com atividades empresariais na área da saúde que visem lucro (distribuídos ou não), como é o caso de centenas de operadoras de planos de saúde, prestadores de serviços médico-hospitalares, indústria farmacêutica e assim por diante. Estas inúmeras atividades são bem-vindas e necessárias ao sistema de saúde suplementar. A crítica que faço a todos nós é de que precisamos caminhar para garantir que o lucro em saúde seja comprovadamente consequência de serviços prestados com ética e comprovada qualidade.
Em recente pesquisa aplicada por nós da Arquitetos da Saúde junto a empresas contratantes de planos de saúde que, juntas, reuniam quase 700 mil beneficiários, ampliamos a perspectiva de valor em saúde e, provocados pelo presidente do Instituto Brasileiro de Valor em Saúde (IBRAVS), César Abicalaffe, perguntamos aos contratantes de planos de saúde coletivos empresariais algumas questões relacionadas à sua percepção de valor na prestação de serviços em saúde sob a ótica do contratante. Destaco dois pontos que vão ao encontro da importância da “vacina de valor” acima citada. De um lado a informação de que menos de 5% das escolhas em saúde são feitas com base em indicadores de qualidade. De outro, numa escala de 1 a 5 (sendo 1 menos importante e 5 mais importante) a constatação de que indicadores de desfecho se apresentavam como a segunda informação que gestores mais gostariam de receber a respeito da rede de serviços disponibilizada por sua respectiva operadora.
A meu ver, isto apenas reforça a importância de deixarmos o discurso e partirmos para a prática na medição isenta e técnica de indicadores de qualidade assistencial, seguida de sua respectiva divulgação aos beneficiários e contratantes de planos de saúde. Ainda que lentamente, o contratante de plano de saúde empresarial, que financia mais de dois terços da saúde suplementar, começa a dar sinais de que pode vir a demandar este tipo de informação como parte do seu processo decisório.
Felizmente, começamos a ver algumas iniciativas nesta direção. Recentemente a Associação Nacional de Hospitais Privados lançou a publicação “Indicadores de Qualidade Hospitalar Anahp”, material que terá periodicidade trimestral e servirá como parâmetros de qualidade para beneficiários e contratantes de serviços de saúde.” Antonio Britto, diretor-executivo da Anahp que, a meu ver, tem quebrado vários tabus na representação de classe do setor, foi preciso ao afirmar: “nós já utilizávamos esses dados internamente, mas agora queremos deixar na mão do consumidor.”
Nesta mesma linha caminha a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que recentemente lançou o Sistema de Indicadores Hospitalares (Sihosp), “plataforma para a coleta de dados desenvolvida para acompanhar o desempenho e avaliar a qualidade de hospitais que atuam no setor de planos de saúde.” Assim como Antonio Britto pela Anahp, Cesar Britto, diretor de Desenvolvimento Setorial substituto da ANS, destaca: “a maior transparência nos indicadores voltados à qualidade da atenção à saúde empodera o consumidor e dá os incentivos corretos para o desenvolvimento do mercado”.
Resumindo, a discussão sobre verticalizadas versus não verticalizadas por si só é míope e rasa, estando muito longe de endereçar a questão de valor em saúde. Precisamos de mais iniciativas como aquelas recém-divulgadas pela Anahp e pela ANS. O caminho será longo e deve necessariamente ter um olhar coletivo na medida em que o telhado de vidro vigente é de todos. Que seja o início de uma jornada no sentido de comprovadamente colocar o paciente no centro do setor de saúde suplementar. A conferir.