Em 2018 publiquei o artigo “Planos de saúde: A vitória de Pirro da Justiça Federal de São Paulo.” Naquela altura, atendendo a um pedido do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), tentou-se limitar o reajuste de planos individuais (em 5,72%) na caneta. Felizmente, esta medida politiqueira desprovida de qualquer fundamentação técnica e com franco desrespeito aos contratos, não vingou. Infelizmente, esta foi apenas uma das inúmeras tentativas desta mesma natureza na saúde suplementar.
Recentemente, por absoluta pressão do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, que ameaçava colocar em votação um absurdo projeto de lei do Senador Eduardo Braga que previa a suspensão de reajustes de planos de saúde, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) se acovardou, perdeu autonomia e extrapolou suas atribuições legais ao determinar a suspensão do reajuste dos planos de saúde por 120 dias.
Seria está uma decisão adequada? Para muitos sim, afinal:
– O aumento de custos de planos de saúde tem girado na casa de dois dígitos há muitos anos, o que demonstra uma afronta ao consumidor tendo em vista que a inflação geral é sempre muito inferior (leia-se: capacidade de repasse destes aumentos aos preços praticados pelas empresas e indivíduos);
– No contexto da pandemia, empresas e indivíduos passaram a enfrentar grandes dificuldades financeiras, o que demonstra absoluta insensibilidade das operadoras de planos de saúde quanto à capacidade destas de arcar com os reajustes contratuais previstos para os planos de saúde;
– Mesmo com a melhoria expressiva dos seus resultados no segundo trimestre de 2020, conforme noticiado na imprensa, operadoras de planos de saúde demonstram não ter escrúpulos ao aplicar os reajustes acima citados. Quanta ganância, muitos pensaram.
Quem olha de fora, aplaude veementemente esta decisão. Viva Rodrigo Maia e, por pressão, a ANS que, neste momento tão conturbado, nos salvaram das maldades e da insensibilidade das operadoras de planos de saúde.
Ledo engano. Vejamos:
– Assim como ocorre com o preço da gasolina (dólar) e mesmo da energia elétrica (tarifas), existem particularidades intrínsecas ao cálculo do reajuste dos planos de saúde que não têm qualquer relação com a inflação geral de preços. No caso específico dos planos de saúde, além da variação de preços praticadas por médicos, laboratórios, hospitais, indústria de equipamentos, medicamentos, insumos etc., ainda há a variação de demanda. Ou seja, se beneficiários, por exemplo, recorrem mais a exames num determinado ano, isto também impacta no custo do plano independentemente do aumento de preços que possa ter ocorrido naquele mesmo período. Em suma, a variação de custos médico-hospitalares contempla a variação de preços e de demanda, sejam elas positivas e/ou negativas. Da mesma forma, esta variação é impactada por outros fatores como o envelhecimento populacional, o aumento na longevidade e a incorporação tecnológica não substitutiva. Portanto, não faz qualquer sentido, seja no Brasil ou em qualquer outro país do mundo, comparar laranja (inflação ao consumidor) com banana (variação de custos em saúde).
– De fato houve uma melhoria expressiva no resultado de operadoras no segundo trimestre de 2020. Isto ocorreu em grande parte pela expressiva redução (parte apenas represada) de demanda por serviços eletivos em tempos de Coronavírus. Ou seja, este resultado, por hora, é artificial. Ele traz apenas uma fotografia do quadro atual e não o filme do resultado de boa parte das operadoras.
Não se iludam: o próximo ano aponta que será extremamente difícil para operadoras (e consequentemente para toda a cadeia de saúde, incluindo empresas contratantes e consumidores) já que é em 2021 que recairá parte do represamento dos procedimentos eletivos de um lado e, de outro, o run off do grande número de beneficiários que terão deixado os planos de saúde, seja por demissão, seja por incapacidade de continuar pagando. Imaginemos ainda o impacto disto tudo para o consumidor de planos de saúde a partir da decisão da ANS de postergação de reajustes. Estes também em 2021 terão que arcar com a adequação dos seus prêmios assim como os reajustes represados. E como farão, ainda, as pequenas e médias operadoras que não têm como aguentar o tranco desta medida até lá?
Que fique claro: operadoras de planos de saúde, assim como hospitais, indústria farmacêutica, corretoras de planos de saúde, empresas contratantes, os próprios beneficiários e absolutamente todos os demais elos desta improdutiva cadeia de saúde têm responsabilidade coletiva pela marcha da insensatez que tem movido este sistema, destruindo valor, inviabilizando acesso e gerando aumentos de custos insustentáveis. Afinal, independentemente da grande complexidade deste sistema, o fato é que historicamente estes têm sido incapazes de endereçar coletivamente o tratamento das causas do aumento de custos que, mesmo não tendo qualquer relação com a inflação geral ao consumidor, poderiam ser muito inferiores do que aqueles observados nos últimos anos. E todos, sem exceção, pagam um preço enorme por isto na medida em que todos perdem quando juntos perdemos a capacidade de preservar ou aumentar o acesso a serviços privados de saúde. Nos últimos cinco anos expulsamos mais de três milhões de beneficiários. Possivelmente outros tantos seguiram o mesmo caminho em tempo mais curto ainda, tendo em vista os impactos econômicos da pandemia.
Naturalmente que as operadoras acabam aparecendo como as grandes vilãs, ainda que sejam apenas a ponta que materializa as ineficiências de um sistema que paga por volume, trata de doenças, é movido por incentivos conflitantes e não mede o resultado do que entrega (desfechos). Afinal, são as operadoras que emitem os boletos com os aumentos de custos que refletem estas ineficiências.
De fato ainda não cuidamos de saúde, e não apenas as operadoras, mas a imensa maioria dos atores de sistema. Volto a dizer, o sistema é extremamente ineficiente, mas a responsabilidade é coletiva. É por estas e outras que afirmo que não temos planos de saúde no Brasil. Naturalmente existem exceções. Refiro-me a algumas empresas que arregaçaram as suas mangas e passaram a cuidar da saúde de seus colaboradores, entendendo que o maior erro estratégico cometido no passado foi terceirizar a gestão de seus custos em saúde. Estas, de forma sustentável, têm vivenciado inclusive redução de custos desde que assumiram as rédeas deste imenso desafio.
Em atividade alguma da economia se controla custos com uma caneta desprovida de bases técnicas e desrespeito a contratos firmados, ainda que concordemos que as premissas atuais não sejam as mais adequadas. E não é verdade que o segmento de operadoras esteja insensível ao momento do mercado e dos consumidores. Infelizmente, notícia boa não gera mídia. Por isso que tem se dado muito pouca exposição ao fato de que foram as próprias operadoras que tomaram a iniciativa de postergar recentemente o reajuste de planos individuais em função da pandemia. E tem sido elas, sou testemunha, que entendendo a dificuldade de muitas empresas, postergaram reajustes a partir de livre negociações e, em muitos casos, a depender do resultado da apólice, concedendo descontos nos planos de saúde empresariais.
Em suma, estamos mais uma vez diante de uma vitória de Pirro. A batalha “vencida” pelo consumidor com esta equivocada decisão da ANS terá vida curta. Não se iludam. É aguardar para ver. De outro lado, é este o preço que a coletividade dos atores da saúde suplementar paga pela ausência de políticas de saúde eficientes. Até que acordem, continuarão sendo vítimas e culpados da frequente politicagem na saúde.