Participei recentemente do V Fórum Internacional da Aliança para a Saúde Populacional (ASAP) como moderador da mesa “Como busquei eficiência na redistribuição de recursos”, que contou com a presença de três ilustres empresas em ramos distintos de atuação: venda de cosméticos, bebidas e hospital. As coincidências dos relatos dos presentes não me surpreenderam na medida em que todos tiveram como ponto de partida para a ação o mesmo sofrimento, qual sejam, as dores geradas pelas ineficiências da cadeia de saúde como um todo. Em suma, num contexto de um sistema fragmentado, pautado pela doença, movido por incentivos predatórios e, consequentemente, destruidor de valor, as respectivas empresas arregaçaram as mangas e partiram em voo solo na busca de alternativas.
Antes de prosseguirmos, cabe um aparte refletindo sobre o oportuno título da mesa, a partir da dissecção do mesmo. Em primeiro lugar, falar na primeira pessoa do singular (eu) e com conjugação no pretérito perfeito do indicativo (busquei) caracterizam proatividade e demonstração de resultados concretos (ainda que parciais, naturalmente). Algo tão diferente da cansativa ladainha da imensa maioria dos eventos em saúde e seus respectivos temas onde predomina a hipocrisia de “quem quer mudança, mas não quer mudar”. Não é por outro motivo que nestes eventos o mais comum é sempre falar na primeira pessoa do plural (nós) e com conjugação no presente do indicativo (precisamos). Voltando ao título da mesa em questão, ao falar em “eficiência”, entende-se a obtenção de resultados com o mínimo de perdas, algo para o qual sabemos haver espaço na gestão de recursos em saúde. Por fim, fala-se em “retribuição de recursos”, o que deixa claro que simplesmente não há recursos novos e sim a necessidade de melhor utilização dos recursos existentes ou até mesmo a sua redução para ser usada para outros fins.
Pois bem, como era de se esperar, felizmente todos os depoimentos estavam totalmente alinhados com o racional acima. Em seus pronunciamentos, os presentes remontaram há aproximadamente cinco anos como ponto de partida das mudanças realizadas, prazo este que coincide com o momento em que o país mergulhou numa profunda crise da qual ainda tenta sair. A drástica mudança de atitude, de uma passividade contemplativa para uma proatividade crescentemente empoderada, ocorreu a partir de então, quando estas (e muito provavelmente outras tantas empresas), entenderam que precisavam urgentemente passar a ser protagonistas da gestão de saúde de seus colaboradores e dependentes. Perceberam que, para mudar o quadro histórico de crescimento de custos de saúde que com certeza levaria as suas empresas à falência, tinham que participar efetivamente como co-gestores da saúde de sua população.
Voltando ao diagnóstico propriamente dito, todos foram categóricos em afirmar alguns aspectos neste processo de busca por maior eficiência na distribuição de recursos. Entre os vários pontos abordados, destaco aqueles que foram ditos por pelo menos dois dos três expositores:
- Postura: todos registraram que a insatisfação com as práticas adotadas (modelos assistenciais e de remuneração) pelos stakeholders do sistema, incluindo eles próprios, e a perspectiva de levar suas empresas à insolvência no médio e longo prazo, foram fundamentais para uma mudança de postura dos mesmos, deixando de ser meros espectadores do fiasco sistêmico para co-gestores da construção de um sistema próprio sustentável;
- Patrocínio: a partir do quadro apresentado, foi fundamental o apoio da alta direção, com compreensão quanto ao prazo de maturação das necessárias mudanças e disponibilidade de recursos, equipe dedicada e estrutura própria;
- Comando: definição de um “maestro” responsável por conduzir e integrar as diversas iniciativas, grupos de trabalho multidisciplinares, comitês, planos de ação com parceiros externos e/ou equipes próprias, mas jamais terceirizando a responsabilidade da gestão;
- Qualidade da informação: a necessidade de dedicar muito tempo para “arredondar a bola” do ponto de vista das informações disponíveis pelos diversos atores (medicina ocupacional, banco de dados de sinistro, cadastros da própria empresa, entre outros), na medida em que a qualidade das mesmas não permitia um diagnóstico adequado;
- Integração da informação: a necessidade de desenvolver ou contratar uma ferramenta que permitisse a integração das informações em tempo real, contribuindo para o melhor diagnóstico, planos de ação e efetiva gestão de saúde populacional;
- Foco na saúde: estruturação de um sistema, próprio ou não, tendo a prevenção como foco a partir de um modelo de atenção primaria à saúde, com a implantação de incentivos pedagógicos alinhados com este conceito;
- Modelos de risco: todos os presentes optaram por adotar o modelo de pós pagamento a partir de algumas premissas: número estatisticamente confortável para mudança de modelo, maior flexibilidade com definição de rede, desejo de participar ativamente da regulação sem prejuízo para os prazos legais da operadora parceira e possibilidade futura de registro de um produto modular;
- Custos como consequência: todos os envolvidos foram claros em registrar que a redução de custos apresentados (no caso da AMBEV – Fundação Zerrenner), impressionantes 30% de 2017 para 2018) tem surgido como consequência da melhor gestão de saúde populacional, a partir dos itens acima citados, entre outros tantos.
Como conclusão, observa-se que independentemente das particularidades e estágio de maturidade no processo de gestão populacional, as dores e desafios são muito parecidos. E, neste sentido, é fundamental que estas e outras tantas grandes empresas protagonistas de mudanças, continuem compartilhando suas experiências em eventos como o da ASAP e, como de fato já ocorre, nos inúmeros grupos existentes de profissionais de recursos humanos. Democratizar cases de sucesso é fundamental neste “momentum” favorável de despertar do financiador, onde ainda são poucas as iniciativas exitosas até aqui, lembrando que absolutamente todas estão em fase de construção. Mas é preciso ir além.
O amadurecimento deste vital elo da cadeia produtiva de saúde, como consequência do olhar individual de uns poucos para dentro, trará, ato contínuo, a necessidade de um olhar coletivo e estruturado para fora. Temas como capacitação de gestores, produção de estudos, pesquisas e benchmarks, definição de pautas técnicas e políticas, representação institucional junto a órgãos e instituições que afetam diretamente as suas atividades, como os três poderes, a imprensa e a própria Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), precisam estar na pauta das grandes empresas patrocinadores de planos de saúde de forma prioritária, estruturada e estratégica.
Aliás, sobre esta última, permito-me uma consideração sem obviamente ter procuração da ANS. Alguns diretores do órgão regulador têm dito que além de acreditar, apoiam iniciativas de empresas financiadoras de planos de saúde que contribuam para que estas assumam, sem prejuízo ao papel dos demais atores, a função de co-gestores da saúde se seus colaboradores e dependentes.
Pois bem, grandes empresas têm uma valiosa oportunidade de fundar uma entidade de classe que possa representar especificamente e exclusivamente temas relacionados a gestão de saúde corporativa num contexto de busca de sustentabilidade do sistema de saúde suplementar. Já sei que muitos dirão: “Mais uma entidade? Não precisamos”. Discordo e explico por quê. Sem demérito algum, a representatividade do tema saúde de grandes corporações e suas implicações sociais e econômicas não está como primeira e única pauta de entidade alguma já constituída ainda que se observe iniciativas isoladas por parte de algumas em temas de saúde. Repito, saúde está em todos os lugares, mas prioritariamente em lugar algum. E isto é compreensível na medida em que estas foram historicamente criadas em torno de segmentos econômicos e não de uma agenda setorial especifica. E, ainda, nada impede que parcerias pontuais possam ser feitas com estas e outras tantas entidades já estabelecidas.
Ainda no tema em foco, além de específico da saúde, a meu ver esta entidade deve ser restrita a grandes empresas na medida em que estas, por seu tamanho, representatividade e capilaridade entre outras particularidades, têm condições efetivas de agir fora da caixa na medida em que reúnem premissas mínimas para poderem pilotar seus próprios processos sem ficarem reféns do status quo.
Viajando um pouco mais, para que esta entidade tenha o DNA que se espera, é fundamental que seu corpo diretivo seja prioritariamente composto por “gente que faz” ou seja, aqueles gestores que efetivamente têm contribuído com uma nova postura por parte das empresas assim como vivenciado cases concretos em suas instituições. E este cenário só seria possível numa entidade com o foco exclusivo em saúde corporativa.
Por fim, sem prejuízo de prazos de maturação de iniciativas diversas relacionadas ao tema, precisamos de agilidade e leveza. E, neste sentido, repito, é preciso ter foco e eficiência, algo que já vem sendo demonstrado pelas empresas aqui citadas e outras tantas que literalmente já assumiram o seu papel de patrocinador (em todos os sentidos) de saúde. O próximo passo é fácil, bastando um mínimo de vontade política para colocar de pé algo que podemos provocativamente chamar de Associação de (Grandes) Patrocinadores de Saúde. Quem se habilita?