A vida é uma só. E o nosso trabalho é o que fazemos da vida | Arquitetos da Saúde
Entrevistas

A vida é uma só. E o nosso trabalho é o que fazemos da vida

Para o médico do trabalho André Fusco, trabalho é o que fazemos da vida e este não pode ser apenas suportado para garantir a sobrevivência. Deve ser onde geramos valor para a sociedade, onde desenvolvemos habilidades e nos desenvolvemos como profissionais. Segundo ele, nós ainda acreditamos que alterar a organização do trabalho torna piores os resultados, mas o que a prática e a ciência mostram é justamente o contrário. A pandemia do coronavírus veio nos mostrar que somos interdependentes. Nos cuidar é cuidar de quem está à nossa volta, na esperança de que esta noção de comunidade e de solidariedade possa contaminar também o trabalho.

 

Qual o impacto que o desenvolvimento das atividades por meio do formato “home office” pode causar na saúde mental das populações corporativas?

 

André Fusco: O home office desfaz ainda mais a crença na separação entre vida pessoal e profissional. A vida é uma só e para ter harmonia, equilíbrio e realização pessoal temos agora que entender que nosso trabalho é o que fazemos da vida e que este não pode ser apenas suportado para garantir a sobrevivência. Trabalho deve ser onde geramos valor para nossa sociedade, onde desenvolvemos habilidades e nos desenvolvemos como profissionais. E ainda temos que ser reconhecidos por isso.  Sem reconhecimento, do ponto de vista psíquico é como se não fizéssemos nada. Talvez um dos principais aspectos que podem ser prejudicados é o reconhecimento. Dependemos da percepção dos outros para entender o valor do que fazemos e nossa evolução no que fazemos. Sem receber dos outros esta percepção temos a sensação de vazio, de não contribuir, de não existir. Este é um aspecto que temos que prestar atenção para que a praticidade, a eficiência e a sobrecarga não deixem sobrar tempo para contar o que estamos fazendo, como estamos fazendo e o quanto estamos nos dedicando. Não é perda de tempo ter reuniões para trocar experiência, sensações, impressões, sentimentos e tudo o que ocorre enquanto trabalhamos. E ouvir o que nossos colegas de trabalho, nossos líderes e nossos clientes pensam sobre tudo isso. Caso contrário a tendência é sentir angústia e aniquilação. É como deixar de existir.

Outro aspecto fundamental é a cognição prejudicada pelas novas formas de interação e distrações do ambiente de casa. O cansaço pode ser maior com tantas novidades no contexto e precisamos permitir nossa adaptação a essas novas demandas cognitivas e tentar ao máximo buscar o maior conforto osteomuscular, ambiental, visual e auditivo. Existem muitos outros fatores que variam em cada casa, e outros fatores que ainda estamos descobrindo. Mas no geral, creio que os ganhos para a saúde mental são muitos. Eu adoraria poder ter acompanhado o trabalho do meu pai tão de perto como meu filho tem feito esses dias. E temos que lembrar que hoje vivemos o home office em meio a uma pandemia e ao isolamento social. Isso contamina nosso entendimento do home office como ele pode ser.

O quanto a saúde mental tem sido um tema preocupante para as empresas e o que elas têm feito em relação aos colaboradores?

André Fusco: A Saúde Mental tem sido uma preocupação crescente e algumas empresas já priorizam esta questão. O problema é que quase a totalidade delas foca nas pessoas, no que elas precisam fazer para se adaptar ao novo cenário. Raramente ocorre um esforço no sentido de adaptar o trabalho às pessoas. Por exemplo, muitas vezes fornecemos treinos de resiliência e fazemos sala de descompressão, mas dificilmente discutimos e alteramos o que está nos obrigando a sermos mais resilientes ou o que está comprimindo. As metas, as formas de avaliação, os processos, os sistemas e os demais aspectos da organização do trabalho são mantidos fora da discussão por conta de vários fatores. Um deles é a crença de que se alterarmos a organização do trabalho os resultados financeiros serão piores. O que a prática e a ciência mostram é justamente o contrário.

Como você vê as relações pessoais e corporativas após os impactos da pandemia do coronavírus, com todas as incertezas que uma pandemia desta proporção pode causar à saúde mental?

André Fusco: Um aspecto negativo é a incerteza. A incerteza mora no futuro. Como será a economia, a socialização, a empregabilidade, a saúde no futuro? Ficar imaginando e vivendo catástrofes fantasiosas por antecipação nos afasta da realidade e até das coisas que podemos aproveitar no presente. Nossa cultura e nossa ciência buscam sempre prever e controlar a natureza e nossas vidas. A pandemia está nos mostrando nossa impotência e nossa arrogância. Isso dói em todos. Traz muita insegurança.

A pandemia, no entanto, também nos mostra que somos interdependentes. Nos cuidar é cuidar de quem está à nossa volta. Não usar máscara hoje é uma tremenda falta de educação. É mostrar desprezo pelas pessoas mais vulneráveis que podem sofrer com o coronavírus. Espero que esta noção de comunidade e de solidariedade contamine também o trabalho. A cultura ocidental de “vencer na vida”, ser o melhor, se sobressair, rankings e premiações individuais estimulam muito o individualismo e a solidão. Melhor seria um mundo do trabalho que valorizasse nas palavras e principalmente nas regras a colaboração, a criação coletiva e o valor do resultado do trabalho.

Hoje predomina o resultado financeiro individual, muitas vezes desatrelado do valor que o trabalho deveria gerar. Para dar um exemplo fácil: vender algo para um cliente traz resultado positivo em termos de avaliação e encarreiramento, mesmo se o que foi vendido não era o melhor para o cliente. Isso gera uma cadeia de desconfiança e de conflitos éticos e morais, que estão na raiz da pandemia de adoecimento mental. Segundo a OMS, foram registrados cerca de 800 mil suicídios em 2019. E este número é muito subnotificado pois muitos países não registram suicídio em seus atestados de óbito.

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