Recente decisão do Ministério Público Federal do Maranhão envolvendo a cobrança de medicamentos vem tirando o sono dos hospitais Brasil afora. Este órgão recomendou que hospitais e demais prestadores de serviços de saúde sejam fiscalizados e punidos caso não cumpram resolução nº 02 de 16 de abril de 2018 da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), que proíbe a obtenção de lucro no fornecimento de medicamentos e outros produtos de saúde. Inserindo esta medida no contexto da acirrada guerra travada pelos elos do setor de saúde suplementar, confesso que o espírito por trás de tal medida não me surpreende.
A CMED é o órgão interministerial responsável pela regulação econômica do mercado de medicamentos no Brasil e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária exerce o papel de Secretária Executiva da Câmara. Segundo site da Anvisa, “a CMED estabelece limites para preços de medicamentos, adota regras que estimulam a concorrência no setor, monitora a comercialização e aplica penalidades quando suas regras são descumpridas.”
Retornando ao assunto propriamente dito, é notório e público que a precificação de hospitais no Brasil tem como base de sustentação as margens em medicamentos, materiais e órteses, próteses e materiais especiais (OPMEs). Historicamente os reajustes de preços das tabelas de serviços hospitalares têm sido negociados sempre abaixo da evolução dos custos hospitalares. Como contrapartida, visando sua legítima sustentabilidade, hospitais têm obtido margens maiores nas tabelas de produtos que neutralizam as perdas em suas respectivas tabelas de serviços.
Independente disto, o fato é que esta forma totalmente ilógica de precificação já tem sua morte anunciada há muito tempo. Os hospitais sabem disto. Muitos hospitais talvez tenham preferido não acreditar. Outros tantos tentaram ao longo dos anos a reversão desta lógica com negociações de transposição de margens. Ao fim e ao cabo, esbarraram na falta de confiança mútua com operadoras de planos de saúde. Como quase sempre ocorre, verifica-se, de parte a parte, alguma transpiração, pouca inspiração e nenhuma confiança.
Pois bem, o reflexo disto tudo está aí. Mais uma vez deixa-se para aqueles que têm pouco ou nenhum conhecimento técnico (assim como ocorreu recentemente com a interferência do STF na resolução normativa nº 433 da ANS, que tratava de coparticipação e franquia), decisões importantes e, no mínimo, adotadas sem considerar sua inviabilidade de curto prazo. O grande culpado disto, no entanto, não é o STF (no caso da RN nº 433) e muito menos o MPF do Maranhão (no caso da resolução nº 02 da CMED) e sim a absoluta falta de confiança na relação entre operadoras de planos de saúde e prestadores de serviços médico-hospitalares.
Voltando ao tema, entidades de classe representativas de hospitais têm se posicionado de forma equivocada a meu ver. Segundo o Sindhosp, as margens cobradas em insumos não se caracterizam como abuso. De fato, analisando-se o “filme e não a fotografia”, isto fica parcialmente claro. Digo isto porque os hospitais historicamente pecam pela falta de transparência na mensuração desta afirmação.
Complementando sua defesa, o Sindhosp argumenta corretamente que “há despesas de logística, armazenamento, distribuição e descarte desses produtos.” Sim, verdade. Mas sabemos que esta afirmação está muito longe de traduzir a real distorção, para mais e para menos, na precificação de serviços e insumos. Uma pena, pois passa a percepção de se estar “tapando o sol com a peneira” quando sabemos que o assunto é mais profundo e amplo.
Pois bem, matérias em revistas de grande circulação como a Exame, entre outras, abordaram inúmeras vezes este tema com destaque no passado. Em matéria intitulada “O Brasil sofre com a doença do custo”, publicada em novembro de 2016, por exemplo, o representante do Instituto de Estudos da Saúde Suplementar (IESS), registrava que “muitos hospitais ganham dinheiro vendendo insumos a preços bem mais altos do que pagam por eles.” Em estudo realizando ao longo de cinco anos para identificar os principais ofensores de custos, o IESS identificou aumento de gastos com materiais de 129% enquanto os custos com internações no mesmo período cresceram 54%.
Ainda que exista a norma da CMED de 2009 já proibindo a cobrança de valores mais altos, na prática quase nada foi feito por hospitais e operadoras de planos de saúde no sentido de corrigir esta questão. Quando vem esta determinação do MPF do Maranhão, as entidades de classe representativas de prestadores de serviços médico-hospitalares procuram socorro junto ao Ministro-Chefe da Casal Civil da Presidência da República, Dr. Eliseu Padilha, solicitando a revogação da alínea “d”, inciso I, alínea “b”, “c” e “h” do inciso II e § 2º, todos do artigo 5º da Resolução.
Ao mesmo tempo, causa perplexidade observar que representantes destas mesmas entidades de classe sequer pronunciaram uma única palavra sobre o tema nesta última terça-feira, 25/9/2018, quando se realizou a 95ª Reunião da Câmara de Saúde Suplementar (CAMSS). A câmara, realizada apenas dois dias antes do encontro com o ministro, contou com a presença de 55 pessoas, mas este tema palpitante estranhamente não despertou o interesse de absolutamente nenhum dos presentes. Além de não se posicionarem, sequer procuraram saber o que a Agência Nacional de Saúde Suplementar pensa a respeito. Afinal, segundo estas entidades, “essa medida poderá trazer graves desequilíbrios econômico-financeiros aos prestadores de serviço de assistência à saúde no Brasil, afetando o acesso da população à saúde, inclusive dos cidadãos atendidos pelo SUS.” Sinceramente, não consigo entender, inclusive por ter participado por anos da Câmara de Saúde Suplementar e reconhecer a sua importância.
Por tudo o que foi aqui exposto, e considerando o ambiente extremamente tenso entre os atores da saúde suplementar, ainda que não concorde com a forma como foi feita esta recomendação pelo MPF do Maranhão, muito menos ainda posso concordar com a postura das entidades de classe neste sentido. Concordo menos ainda com a crescente e preocupante guerra de trincheiras entre operadoras e prestadores a partir de suas respectivas entidades de classe. Mas é fato que não me surpreendo com o espírito de mais esta ação, puro reflexo dos ânimos das entidades de classe representativas da saúde suplementar.
Por fim, uma curiosidade apenas, eventualmente pautada pela minha ignorância sobre o tema: por que uma decisão desta magnitude teria partido de estado que representa menos de 1% dos beneficiários de planos de saúde no país e que tem pouco mais de 5% de sua população coberta por planos de saúde?