Dando continuidade aos artigos da série “A corrupção de sobrevivência na saúde mata”, irei abordar exemplos concretos que envolvem a participação de cada um dos elos da cadeia de saúde suplementar. Antes, porém, cabe registrar alguns pontos. Independentemente da consciência de cada um, é fato que o ambiente em geral acaba sendo incentivador destas práticas por várias razões. De um lado, operadoras que por vezes negam direitos efetivos de pacientes e glosam serviços efetivamente realizados por prestadores de serviços médicos. De outro, um modelo de remuneração em vigor que paga por volume e não pelo efetivo cuidado com a saúde das pessoas, levando beneficiários, médicos, hospitais, indústria, distribuidores e assim por diante, a práticas por vezes questionáveis. Em outros casos, existem beneficiários que não entendem que determinadas demandas assistenciais podem simplesmente não ter previsão contratual e preferem dar um jeitinho de burlar as regras. E mais, entidades de classe corporativistas que passam a mão na cabeça de seus representados. E, ainda, para coroar o ambiente lesivo, uma justiça que deixa muitíssimo a desejar. Ao fim e ao cabo, muitos se sentem com autoridade moral para dar o troco. Na prática, um modelo que coloca todos contra todos.
Feita esta introdução sobre algumas das possíveis causas que levam a posturas fraudulentas, vamos abordar o assunto, para fins deste texto específico, a partir do papel do beneficiário nisto tudo. Recentemente recebi a informação de que uma determinada operadora cuidadosamente mapeou os tipos de fraudes desta natureza, tendo chegado a 16 exemplos! Naturalmente que irei abordar apenas alguns, de forma a não tornar este texto cansativo demais mas, ao mesmo tempo, suficientemente desconfortável para gerar reflexão e, quem sabe, ação.
“MENTIRA TEM PERNA CURTA” – (fraude no preenchimento da Declaração Pessoal de Saúde (DPS)
Muito tem se falado sobre corrupção e fraude na utilização de serviços de saúde, mas em alguns casos ela se inicia muito antes, remontando ao ato da assinatura do contrato. Isto ocorre, por exemplo, quando beneficiários, por conta própria ou às vezes, pasmem, orientados por intermediários espertos preocupados com o fechamento do contrato a qualquer custo, omitem propositadamente informações conhecidas sobre doenças e lesões preexistentes no ato do preenchimento da declaração pessoal de saúde. Algum tempo depois demandam autorizações para serviços médicos específicos que acabam descortinando fraudes no processo de contratação.
O próprio Instituto de Defesa do Consumidor alerta em seu site que “se for identificada alguma fraude, a operadora pode cancelar imediatamente o contrato e até cobrar do usuário as despesas realizadas”. Quando trabalhei em hospitais, acabei vivenciando a “hora da verdade” dos desdobramentos desta prática em algumas oportunidades. Era quando, senhas eram negadas e beneficiários ingressavam na justiça para realizar tratamentos que efetivamente não deveriam mesmo ser autorizados naquele momento na medida em que ficava absolutamente comprovada a fraude no ato da contratação, tendo em vista omissão de informações que simplesmente não tinham como ser desconhecidas. Recordo-me de um caso específico em que os advogados da paciente alegaram ser um absurdo a negativa, esquecendo, porém, das fotos postadas pela paciente no Facebook, onde estava claramente exposta a mentira que se tentava negar. Mesmo assim, pasmem, um juiz determinou que a operadora autorizasse o procedimento. Um triste exemplo de quando “a lei” burla o sistema. Ainda que a operadora tenha posteriormente dado andamento ao tema do ponto de vista legal, os custos específicos da internação já não tinham mais como ser evitados.
“DIVIDINDO O INDIVISÍVEL” (Quebra de recibo em consultas e terapias)
Infelizmente é mais comum do que parece e assusta ver como ainda tem pessoas que não veem nada de errado com isto, afinal acreditam ser uma forma de diminuir o prejuízo entre o valor da consulta médica e do reembolso contratual. Se do ponto de vista ético pode incrivelmente não ficar claro para alguns, do ponto de vista matemático a resposta é simples: se você fez uma consulta peça apenas um recibo e ponto. Se tiver feito duas consultas, peça dois e assim por diante. Além de imoral isto é ilegal e configura falsidade ideológica.
Há menos de um mês, um membro da minha família que tinha fraturado o úmero, recorreu a mim para interpretar uma mensagem que tinha recebido da clínica de fisioterapia na qual tinha acabado de começar a fazer sessões como paciente particular, pois a referida clínica não era credenciada de sua operadora. Tendo entendido que o reembolso seria baixo e sinalizado à clínica que pensava em buscar um prestador credenciado por sua operadora, ele recebeu a seguinte mensagem por Whatsapp: “Bom dia. Vi aqui os códigos e o seu é “XPTO” e ele reembolsa 40 reais. O que a gente pode fazer é duplicar as sessões feitas por semana. Por exemplo: essa semana você vai fazer duas sessões e eu emitiria uma nota com quatro sessões com a metade do valor”. Quando li este absurdo, imediatamente contactei o meu parente que me retornou no dia seguinte informando que tinha conversado com a proprietária da clínica e que ela estava envergonhada e não tinha a dimensão (por incrível que pareça) da fraude que quase cometera e que isto jamais voltaria a acontecer. Será mesmo? Por fim, disse ao meu parente que ligarei em poucos meses me passando por um cliente oculto para atestar que esta prática não mais é feita pela referida clínica. Está aqui uma ação simples ao alcance de cada um de nós: alertar, orientar, fiscalizar e/ou denunciar práticas fraudulentas. Quem não faz isto, é conivente e ponto. Mas quantos de nós têm feito algo neste sentido quando sabemos que a fraude ocorre?
Que fique bem claro que isso não ocorre apenas com terapias, mas principalmente com consultas, item de maior frequência por parte dos beneficiários. Mediante uma consulta particular no valor de 500 reais, por exemplo, pedem-se dois recibos (isto quando a própria secretária já não oferece) no valor de 250 reais cada, com prazo entre as consultas de mais de 30 dias.
Recentemente estive com uma operadora que me relatou o caso do um alto executivo de uma empresa cliente que havia dado entrada com pedido de reembolso de duas consultas eletivas, no mesmo valor, com o mesmo médico, sem se dar conta de que o segundo recibo, além de datado em um domingo, estava com data posterior à apresentação do mesmo. O segundo reembolso não foi concedido e o caso foi relatado à empresa que nada fez, onerando a si própria e sendo conivente com a fraude de seu colaborador de alto escalão. Ainda não sei o desfecho deste caso, mas espero que a operadora tenha a coragem de cancelar o contrato bem como adotar medidas legais contra o beneficiário e o prestador.
Mas o que mais pode ser feito para combater casos como este? Do ponto de vista de auditoria, em casos de desconfiança, uma alternativa pode ser entrar em contato com o consultório médico para indagar sobre o valor da consulta particular. Em determinados casos, não tenho dúvida, o valor em questão será coincidentemente equivalente à soma dos dois recibos apresentados com intervalo de trinta dias. Bingo! E, comprovada a fraude, novamente caberiam medidas legais contra todos os participes.
“MULTIPLICANDO O INEXISTENTE” (recibos de procedimentos não realizados)
Recentemente uma grande operadora obteve decisão da Justiça de São Paulo para rescindir contrato com um usuário do plano de saúde que apresentou notas falsas em pedidos para o reembolso de despesas médicas. Mesmo depois de decisão favorável ao usuário tanto na primeira instância como no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) a fraude pôde ser constatada porque a operadora, ao receber os recibos para efetuar o reembolso, entrou em contato com os profissionais que constavam nos documentos e estes informaram que não conheciam o paciente e tampouco a assinatura e o carimbo como sendo seus. Depois de analisar os documentos que foram apresentados pela operadora, a juíza do caso entendeu que houve “quebra da boa-fé objetiva” por parte do beneficiário e, com base no artigo 18 da resolução normativa da ANS, onde consta que as operadoras podem excluir beneficiários de forma unilateral em casos de fraude, autorizou a rescisão. Excelente desfecho para o bem do sistema
“QUANDO O BEM SE CALA, O MAL PROSPERA” (cobrança de códigos que não foram feitos em contextos em que o beneficiário tem certeza disto)
Recentemente estive com um amigo que tinha acabado de passar por uma cirurgia. Ciente de que atuo no setor de saúde suplementar, ele me relatou um episódio que vinha tirando seu sono. Antes de dar entrada no reembolso de seu plano, ele observou que constavam vários códigos na documentação enviada pela equipe médica, sendo que alguns destes efetivamente não tinham sido realizados. Questionei se isto de fato procedia, pois ele não tinha domínio sobre a atividade médica. Foi quando, sem jeito, me relatou que tinha certeza, tendo inclusive consultado vários médicos amigos seus para entender os códigos de cobrança da tabela de referência, que seriam adequados ao procedimento pelo qual tinha passado. Se de um lado uns poucos médicos têm esta conduta e, muitas vezes, o paciente não tem a menor condição da avaliar, em outros, a partir do momento em que ele não tem dúvidas passa a ser conivente com a fraude. Aconselhei o meu amigo a retornar ao profissional em questão relatando a necessidade de ajustes na documentação. Afinal, conivência representa participação passiva na fraude, a meu ver. Mas quantos beneficiários efetivamente agem neste sentido mediante confirmação de cobranças indevidas? Mais fácil deixar como está né, afinal acreditam que quem paga a conta são as operadoras e/ou sua empresa (quando o plano for corporativo). E, vamos lá, isto ajuda a minimizar o desembolso entre o valor cobrado e o efetivo reembolso contratual. O velho jeitinho brasileiro de uns poucos que agridem a maioria que age com retidão.
“GATO-CARTEIRINHA” (aluguel de carteirinha)
Se o empréstimo de carteirinha já é um absurdo, o que dizer sobre o seu aluguel? Já tinha escutado falar de “gato-NET”, mas nunca de “gato-carteirinha.” Soube há poucos dias, por um executivo de operadora de plano de saúde, de uma fraude da qual jamais tinha tido notícia. Indivíduos que alugam sua carteirinha para amigos e conhecidos que não têm plano de saúde a um custo, digamos, de R$ 18,00/dia. Este valor, pode ser maior para os casos em que há a necessidade de confirmação via token no celular. Faz sentido, na medida em que se ampliam os “serviços” de locação incorporando soluções tecnológicas para burlar a lei. Sim, chega-se a este ponto de sofisticação na bandidagem. Parece-me que a implantação da identificação facial, como já fazem aplicativos de bancos e companhias aéreas, pode ser uma solução para minimizar drasticamente este tipo de fraude. Mas quantas operadoras caminham para soluções como esta?
Resumindo, estes são apenas alguns dos exemplos onde o vilão é o consumidor, seja de forma ativa ou passiva. Que fique claro que não estou generalizando e, muito menos, dizendo que isto ocorra de forma desenfreada. Independentemente disto, imagino que você que me lê com certeza já vivenciou ou soube de exemplos como aqueles que citei acima. A meu ver, a tolerância para estas práticas, como sugeriu o leitor Cristiano Pedroso, em seu comentário a um artigo meu recente, tem que ser zero! De nada adiantam as previsões legais existentes para coibir este comportamento se nós, atores do sistema de saúde, não fizermos a nossa parte. E você, o que tem feito neste sentido? Não se esqueça: quando o bem se cala, o mal prospera!