De longe, o assunto mais abordado ao longo deste ano foi o coronavírus. Trágico de um lado, na medida em que perdemos vidas, empregos, renda e muito mais. E triste por outro, pois deixamos de conviver e nos abraçar, numa impossibilidade que nos fez passar a valorizar estes gestos mais ainda. Aliás, que falta que faz um abraço!
Vivemos praticamente o ano todo em isolamento social. Isto nos trouxe solidão. Mas, a depender do olhar, também nos trouxe a oportunidade de ir além, de vivermos em solitude. Diferente de solidão, a solitude não está associada a sentimentos negativos. No contexto da pandemia, solitude pode ser uma valiosa oportunidade de compreendermos a magia daquilo que o sábio poeta Mário Quintana resumiu certa vez: “eu moro em mim mesmo.”
O isolamento imposto, o medo de morrer e a interrupção desenfreada do ir e vir de uma vida frequentemente caótica, muitas vezes em busca de uma felicidade superficial, por vezes até travestida por uma consumolatria tóxica, por sensações e aparências, nos colocou cara a cara com nós mesmos onde muitas atitudes passaram a ser questionadas. Sob vários aspectos foi uma benção, eu diria. Passamos a ter mais tempo, tempo para nós. Tempo para refletir, tempo para ser.
Recentemente me deparei com uma frase de Mário Sérgio Cortella que traduz de forma definitiva uma das principais lições que a pandemia me fez revisitar. Disse ele: “ainda bem que a nossa mortalidade é presente porque isto permite que saibamos que porque vai acabar, é melhor não descartar, não tornar banal, não tornar inútil.” Sim, a pandemia tornou latente a dura realidade de que somos passageiros ao mesmo tempo em que escancarou o fato de que, ainda que breve, a vida não precisa ser pequena. Absolutamente óbvio, eu sei, mas frequentemente adormecida esta noção dentro de muitos de nós. E não há nada de errado em sermos passageiros, desde que sejamos necessariamente protagonistas de nós mesmos.
O tema da finitude não era tão novo para mim, afinal, na minha adolescência, não sei bem por que, nem como e muito menos em que momento, tive este estalo pela primeira vez. Foi quando, mais cedo do que desejaria, penetrou em definitivo na minha alma a noção de que um dia eu morreria para sempre (pelo menos na forma como vivemos aqui). Conscientizar-me disto foi assustador num primeiro momento. Um gosto amargo de querer voltar atrás e apagar aquilo, em definitivo, da minha memória. Naturalmente isto não foi possível, pois já estava carimbado em minha alma.
Anos depois perguntei ao meu saudoso psicanalista Abram Eksterman (falecido em 2020) porque, de tempos em tempos, me vinha à mente a questão da morte. Com aquele inesquecível sorriso de um homem sábio, pausadamente me respondeu: “porque você está vivo.” Suas aparentes óbvias palavras me fizeram refletir, afinal, já o conhecendo há muitos anos, sabia que o que ele me respondera ia muito além de estar vivo por estar respirando. Ele não tinha me dado uma simples resposta, mas sim me provocado a pensar e refletir sobre o que estar vivo significava para mim.
Tempos depois fui “presenteado” com uma frase de minha querida avó Stella, numa conversa à beira do seu leito hospitalar, em uma de suas inúmeras internações. Disse-me ela a certa altura, no contexto de uma leve conversa sobre a vida: “sabe meu neto, para mim já está bom, já posso ir, já vivi tudo o que queria viver.” Surpreso, pedi a ela que repetisse o que tinha acabado de dizer. Afinal, como ousaria ela endereçar o tema da finitude com tanta lucidez? Mais do que tristeza, me trouxe conforto, pois foi a primeira vez que presenciei uma fala como esta vindo de alguém que estava chegando próximo ao fim de sua vida. Ao mesmo tempo, peguei-me pensando sobre a vida da minha querida avó e concluí que aquele ensinamento era mera consequência do fato dela ter vivido sua vida com plenitude. Não tinha vindo a passeio. Vovó Teteia, como todos os netos a chamavam carinhosamente, tinha me dado uma linda lição, não só pela vida que levava, mas pela forma como endereçava sua finitude.
Acho que um dos legados da pandemia foi exatamente esta pedagógica noção de finitude que, para mim, definitivamente renasceu de uma forma marcante. Não foram poucas as vezes em que me peguei pensando sobre este tema, talvez agora por ter mais medo e tempo e menos distração. Pergunto-me se estes não têm sido exatamente os ingredientes necessários para passeios interiores com mais frequência, profundidade e reflexão. De uns tempos para cá, venho conversando mais comigo mesmo. E você?
Quero crer que estes novos tempos tenham nos humanizado um pouco mais, contribuindo para nos tornarmos mais afáveis, humildes e solidários, a começar com nós mesmos. Sinto que têm me ajudado a realinhar o meu “eixo interno”, contribuindo para algum grau de ajuste em comportamentos que posso melhorar, sempre na direção daquilo que parece fazer mais sentido para mim, daquilo que é essencial. Resumiria este sentimento no que Mário Sérgio Cortella disse certa vez: “sermos importantes onde quer que estejamos, seja no contexto da família, amizades, comunidade ou da empresa.”
Este tempo de pausa nos remete a algumas perguntas que me parecem fazer sentido neste momento de renascimento. O que fizemos até aqui? O que verdadeiramente faz sentido para nós? Qual o nosso propósito? Que legado pretendemos deixar? Não precisa ser nada grandioso do ponto de vista da percepção do próximo, mas necessariamente gratificante a partir do nosso próprio olhar. Ao sermos melhores para nós mesmos teremos a capacidade de também o ser para a coletividade.
Recentemente tive a honra de participar de um bate-papo com mentorados do Colégio Brasileiro de Executivos da Saúde de 2020. Me pergunto inclusive se este texto não foi inspirado na conversa que compartilhamos na ocasião. Em seu encerramento, me pediram para deixar uma mensagem. Parei, respirei, pensei e disse: “cuidemos da casinha, afinal, como nos ensinou Mário Quintana, moramos em nós mesmos.” Em seguida, fomos interrompidos pela Alyne, uma das mentoradas. Corajosamente, e bastante emocionada, ela nos agradeceu pela conversa de alma, dizendo que tinha escutado o que mais estava precisando naquele momento. Ao fim de nossa conversa com aqueles jovens executivos, acho que ficou como mensagem para cada um de nós o que certa vez disse Albert Einstein: “a importância de sermos pessoas de valor, antes de nos preocuparmos em sermos bem sucedidos.”
Em tempos de pandemia, o uso de máscaras tem sido uma das formas de proteção. Mas, pensando bem, e citando o escritor Alexandre Caldini Neto, que internamente tenhamos a capacidade de retirá-la “de forma que possamos ser nós mesmos na nossa melhor, mais pura e simples forma. “