Telemedicina no contexto do Coronavírus: será que o paciente vai vencer o corporativismo médico? | Arquitetos da Saúde
Reflexões para Ontem

Telemedicina no contexto do Coronavírus: será que o paciente vai vencer o corporativismo médico?

Meu avô Genival Soares Londres, médico paraibano falecido em 1977, praticou a telemedicina ao longo de sua vasta e dedicada prática médica. Assim como fizeram vários de seus amigos e colegas médicos na época em que utilizavam telefones fixos para tornar mais simples e prático contatos pontuais com seus pacientes. E assim o fez meu pai, igualmente cardiologista, ao longo de sua prática. Em comum, havia o fato de que isto ocorria apenas quando já conheciam bem o paciente. Segundo citado por meu pai em artigo publicado há tempos no Jornal do Brasil sobre telemedicina: “sabíamos quando isso era possível e tendo a noção que podíamos fazer recomendações e mesmo medicações e indicação de exames complementares. Caso sentíssemos necessidade solicitávamos aos pacientes para irem ao consultório ou mesmo ao hospital ou nos receberem em suas casas.”

O termo telemedicina tem origem na palavra grega ‘tele’, que significa distância. Segundo o Portal Telemedicina, “abrange toda a prática médica realizada à distância, independentemente do instrumento utilizado para essa relação. Desde os tempos de meu avô, a tecnologia mudou e os meios de comunicação foram aperfeiçoados com o surgimento dos celulares e posteriormente da internet, sendo hoje possível, inclusive, a transmissão de imagens em alta resolução que, na prática, auxiliam os médicos a cuidarem de seus pacientes também por estes meios. Aliás, me pergunto quantos de vocês médicos, que me leem, não praticam telemedicina há muito tempo, naturalmente ressalvado o conhecimento prévio do paciente? Afinal, a evolução tecnológica tornou a telemedicina uma realidade inevitável. Ainda assim, infelizmente, o Conselho Federal de Medicina (CFM) efetivamente não vem dando respostas conclusivas e atualizadas à altura dos benefícios da telemedicina para a população. Esta omissão fica ainda mais latente, no contexto do coronavírus, onde países mundo a fora (China entre outros tantos) têm utilizado a telemedicina como uma das estratégias para enfrentamento desta pandemia.

Estes dias escutei na Bandnews, a excelente entrevista “Telemedicina se torna aliada no combate ao coronavírus” onde o Dr. Chao Lung Wen, professor da Faculdade de Medicina da USP e chefe da disciplina de telemedicina, faz excelentes esclarecimentos para a população a respeito da telemedicina no contexto do coronavírus. Ao fim da entrevista, quando perguntado sobre a regulamentação da telemedicina no Brasil, o Dr. Chao respondeu que “na verdade a telemedicina está aprovada no Brasil. Porém, nós só temos uma questão, estamos usando a resolução de 2002. O CFM prorrogou o prazo para que as entidades médicas e as instituições contribuam com novas sugestões a partir da resolução de fevereiro do ano passado. Então as perspectivas são: embora a telemedicina seja parcialmente aprovada no Brasil usando uma resolução de dezoito anos atrás, o CFM prorrogou prazo até fim de março para que entidades de classe médicas façam as suas contribuições e a seguir ele fará uma análise para a emissão de uma nova versão desta resolução”

Indo um pouco mais a fundo no que citou o Dr. Chao em sua entrevista, seguem alguns pontos da atual base regulatória da telemedicina no Brasil.

Código de Ética Médica (CFM) – Capítulo V

·     Artigo 37 – É vedado ao médico prescrever tratamento e outros procedimentos sem exame direto do paciente, salvo em casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada de realizá-lo, devendo, nesse caso, fazê-lo imediatamente depois de cessado o impedimento, assim como consultar, diagnosticar ou prescrever por qualquer meio de comunicação de massa

o  Parágrafo único: o atendimento médico à distância, nos moldes da telemedicina ou de outro método, dar-se-á sob regulamentação do Conselho Federal de Medicina.

Resolução CFM 1.643/2002

·     Artigo 3º – Em caso de emergência, ou quando solicitado pelo médico responsável, o médico que emitir o laudo à distância poderá prestar o devido suporte diagnóstico e terapêutico.

·     Artigo 4º – A responsabilidade profissional do atendimento cabe ao médico assistente do paciente. Os demais envolvidos responderão solidariamente na proporção em que contribuírem por eventual dano ao mesmo.

Resolução CFM 1.451/1999

·     Parágrafo Primeiro – Define-se por urgência a ocorrência imprevista de agravo à saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador necessita de assistência médica imediata.

·     Parágrafo Segundo – Define-se por emergência a constatação médica de condições de agravo à saúde que impliquem em risco eminente de vida ou sofrimento intenso, exigindo, portanto, tratamento médico imediato.

Ainda que as alternativas de telemedicina tenham evoluído muitíssimo, do ponto de vista regulatório este importantíssimo tema continua adormecido e, portanto, desatualizado há praticamente dezoito anos. Cabe lembrar que em 2019, a partir da resolução 2.2217/18, o CFM regulamentou que os médicos brasileiros poderiam realizar consultas online, assim como tele cirurgias e telediagnóstico, entre outras formas de atendimento médico à distância. Na ocasião o CFM, corretamente a meu ver, defendeu que “a telemedicina é uma evolução natural dos cuidados de saúde no mundo digital. A cada dia torna-se mais indiscutível a capacidade que ela tem de melhorar a qualidade, a equidade e a acessibilidade.” Infelizmente, para prejuízo da população brasileira, o CFM acabou revogando em fevereiro do ano passado esta resolução sem nada mais ter normatizado, de concreto, até então.

Em linha com a entrevista do Dr. Chao, destaco alguns pontos da recente entrevista do Dr. Sidney Klajner, Presidente da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, à rádio CBN, a respeito dos benefícios da telemedicina. Segundo ele, “o programa de telemedicina do Einstein não nasce agora, ele começa em 2012 com diversas iniciativas que buscam vencer barreiras geográficas através de recursos tecnológicos. A gente sabe hoje que 80% das questões de urgências leves podem ser resolvidas por telemedicina. E numa situação de pandemia como estamos passando, onde o portador de uma infecção por coronavírus também é disseminador, é importante que ele primeiro não onere o sistema de saúde trazendo um número maior de atendimentos do que precisa. Segundo, se ele puder se manter na sua residência, evitando o contato com outros pacientes ou profissionais de saúde, é melhor para todo o sistema, inclusive para o seu conforto. Então, a telemedicina acaba constituindo uma tecnologia bastante eficaz e bastante oportuna neste momento.”

Em outro trecho da entrevista, Dr. Sidney destaca que “a telemedicina vem sendo exercida pelo hospital também em âmbito de saúde pública. Temos projetos para telemedicina especializada para 120 municípios da região Norte e outras iniciativas que nós temos como assistência do médico especialista em UTIs pelo Brasil. Hoje nós temos 200 leitos de UTI assistidos por profissionais especialistas do Einstein. Então, nesse momento, o que nós estamos fazendo em parceria com o Ministério da Saúde é estender toda nossa capacidade de abordagem por telemedicina aos pacientes, aos médicos de família ou médicos generalistas que possam ter contato com uma central especializada para indicar coleta domiciliar, indicar tratamento, indicar melhor abordagem terapêutica para nossos pacientes que já estão em estágio mais grave. Então, é um recurso bastante eficaz.”

Constatado os enormes benefícios que a telemedicina pode trazer para pacientes e a população em geral, muito além inclusive da sua importância no contexto atual da pandemia do coronavírus, vamos aos números para demonstrar como o CFM vem tratando do assunto:

·    Passados pouco mais de 16 anos (07 de agosto de 2002) desde sua primeira normatização, o tema telemedicina foi finalmente regulamentado pelo CFM em 27 de setembro de 2018, tendo sido publicado no Diário Oficial da União, em 01 de novembro de 2018. Ou seja, pasmem, precisamente 5.560 dias após a sua primeira normatização;

·    Em 25 de fevereiro de 2019, o CFM revogou a Resolução acima, de número 2.227/18, que atualizava as normas de funcionamento da telemedicina no país. Portanto, 87 dias após a sua publicação e 5.647 dias após a publicação da RN 1.643 de 2002;

·    A partir daí, os 60 dias inicialmente citados como prazo “para que sugestões de alterações fossem feitas pelos conselhos regionais e também através de consulta pública” foram em muito extrapolados na medida em que, contados até a data de hoje, já se passaram 386 dias. Desde a primeira regulamentação de 2002, já se passaram impressionantes 6.428 dias.

Fica latente que a regulamentação sobre este importante tema lamentavelmente não evoluiu na mesma velocidade que a sociedade. Felizmente, para o bem da população e graças a pessoas e instituições como o Dr. Chao e a Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, entre tantos outros profissionais e instituições de saúde, na prática os efeitos da telemedicina (não limitada ao momento atual do cononavírus), tem contribuído significativamente para o bem da população brasileira. E, com certeza, poderá contribuir ainda mais a partir de inúmeras iniciativas que aguardam pacientemente a atualização da sua regulamentação.

Neste sentido, me pergunto: que tal uma tardia nota oficial do CFM sobre quando finalmente pretende atualizar de vez a regulamentação da telemedicina? E que isto não se resuma apenas às necessidades de regulamentação por conta da pandemia do coronavírus.

E, por fim, como registrou meu pai médico no artigo citado no início deste texto, um bom caminho nesta direção seria resumir esta polêmica a partir do espírito embutido nas seguintes palavras e em várias das práticas de telemedicina, felizmente já em vigor: “toda nova tecnologia é sempre muito bem vinda desde que não se sobreponha aos princípios que regem a Medicina, principalmente a relação médico-paciente, a anamnese completa e o raciocínio clínico.”

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