Em novembro passado, a renomada revista científica The Lancet, publicou o artigo “Corruption in global health: the open secret”. Escrito por Patricia Garcia, ex-Ministra da Saúde do Peru, Logo na introdução ela cita que “ainda que seja uma das mais importantes barreiras na implementação de cobertura universal no mundo, a corrupção é raramente discutida de forma aberta.” Segundo a autora, entre 750 bilhões e 1,75 trilhões de dólares são perdidos anualmente em despesas globais de saúde devido à corrupção.
E na saúde suplementar brasileira, qual a gravidade desta epidemia? No artigo “A luz do sol é o melhor detergente…”, cito o estudo Evidências de Práticas Fraudulentas em Sistemas de Saúde Internacionais e no Brasil, publicado pelo Instituto de Estudos e Pesquisas em Saúde Suplementar (IESS), em março de 2017. Segundo o artigo, identificou-se que entre 12% a 18% das contas hospitalares apresentam itens indevidos e entre 25% e 40% dos exames laboratoriais não são necessários, resultando em R$ 22,5 bilhões de gastos indevidos (fraudes e desperdícios) no ano de 2015. Em novo estudo publicado com dados de 2017, o IESS atualizou estes números para 27,8 bilhões.
Mais recentemente, a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaude), dedicou um capítulo inteiro sobre o combate à fraude em seu recém lançado documento Mais Saúde. Segundo o texto, “no sistema de saúde suplementar há vários indícios de práticas fraudulentas no fornecimento de serviços por parte dos prestadores, fornecedores e beneficiários. Não são, claro, a regra, estando restrito à minoria. Entretanto, essas ocorrências, embora possam gerar ganhos para uns poucos, trazem enormes prejuízos para todo o conjunto de beneficiários. Tais evidências sugerem que estes desvios de conduta são mais comuns do que podem parecer à primeira vista e devem ser alvo de medidas legais e operacionais para coibi-los.”
Antes de prosseguirmos convém uma breve distinção entre corrupção e fraude. Em ambos os casos, busca-se o benefício próprio, estando a corrupção mais diretamente ligada ao suborno, com ciência de todos os participantes. Já no caso da fraude se tem a intenção de enganar alguém a partir de comportamento desonesto.
Dito isto, chego à triste constatação de que, mais uma vez na saúde suplementar (ainda que não restrito a ela), falamos muito e fazemos pouco. Aliás, somos campeões de audiência em muito falar e pouco fazer para combater comportamentos e práticas ilegais. Talvez porque em algum grau absolutamente todos os elos se beneficiam disto na medida em que a “corrupção de sobrevivência” nos mantém vivos. E, pensando bem, por que mudar se, ao fim e ao cabo, as penalidades não chegam? Por hora, fiquemos com a fumaça pois tem sido mais conveniente.
Entidades de classe representativas de todos os elos do setor de fato têm realizado eventos sobre o tema. Porém, na sua maioria surgem em reação a escândalos noticiados, e morrem tão logo estes deixem de ser manchete. Estudos têm sido produzidos, mas muitas vezes de forma pouco aprofundada e enviesada, gerando a impressão de que se quer muito mais buscar culpados do que contribuir para soluções. Por estes e outros tantos comportamentos, somos levados a crer que estas iniciativas são, na sua maioria, fugazes e oportunistas tendo como preocupação velada não colar em suas imagens a percepção de omissão, conivência ou culpa.
E aí o tema recrudesce a cada novo escândalo para em seguida sair de cena. Da porta para dentro, se apressam em escrever e divulgar modelos e atualizações de seus robustos Códigos de Ética. Incentivam a criação de estruturas corporativas de compliance para combater este grande mal. Entre quatro paredes mudam-se muito pouco. Estudos, códigos e propostas de fato são importantes, mas sem o efetivo rigor técnico e compromisso com seus desdobramentos, não nos levaram a lugar algum. A meu ver temos feito pouco, muito menos do que coletivamente somos capazes. E neste sentido, temos nos prestado um grande desserviço, na medida em que somos todos vítimas e culpados.
Sim, mas por onde começar? Que tal buscar inspiração em quem efetivamente tem feito algo neste sentido. Que tal começar conversando com o Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) que tem como missão “identificar, discutir, propor e apoiar iniciativas para fortalecer a ética e reduzir práticas ilícitas que provocam desequilíbrios no mercado como a evasão fiscal, a informalidade, a falsificação, o contrabando e outros desvios de conduta.”
Se indústrias distintas conseguiram se juntar em torno deste instituto, por que nós, elos de uma mesma indústria que lida com vidas não avançamos? Se a construção de uma agenda positiva da saúde suplementar não tem saído do papel por que frequentemente fincamos posições que enaltecem mais as nossas diferenças do que as nossas semelhanças, qual a barreira neste sentido de colocarmos o combate à corrupção e à fraude na pauta? Afinal, este é um item que acomete todos os elos da cadeia e para ele não há posições diferentes, mas sim uma única posição, que é a retidão.
Por que não criarmos um “corruptômetro” ou “fraudômetro” da saúde assim como o fez a Associação Comercial de São Paulo com o “Impostômetro”? Vamos produzir estudos técnicos, responsáveis e propositivos neste sentido para identificarmos o tamanho da dívida que temos com a sociedade onde, que fique claro, o cidadão também tem sua parcela de responsabilidade. Como sugere Patricia Garcia, que tal desenharmos e testarmos intervenções anticorrupção e antifraude na saúde? Indo além, o que pensa, o que tem feito e que pode fazer o órgão regulador neste sentido?
Não tenhamos medo de levantar esta bandeira e partirmos para ações efetivas. Precisamos tornar público este segredo que já não é segredo para ninguém, mas que apenas tem sido tratado de forma muito pouco propositiva.
Como bem disse Patricia Garcia em seu artigo aqui citado, “atos individuais de corrupção, nas diversas interações diárias, podem parecer pequenos em escala, mas estes representam milhões de interações negativas tendo um enorme e danoso efeito sobre os esforços de melhorar a saúde.”
Se de um lado temos uma agenda setorial a ser construída neste sentido, de outro precisamos também olhar de baixo para cima, dando pequenos passos. Neste sentido, como humilde contribuição irei abordar em textos futuros alguns poucos exemplos de corrupção e fraude (já adianto que todos de amplo conhecimento) no mundo real da saúde, a partir de cada elo, para em seguida complementar com o registro de algumas iniciativas já implantadas e/ou sugestões práticas para combatê-las. Que fique claro que o objetivo não é apontar culpados, mas identificar oportunidades e propor, quando possível, algumas ações. Pensemos grande mas comecemos simples naquilo que está ao alcance de nossas mãos.
Para finalizar, um estudo da ONU demonstra que aproximadamente R$ 200 bilhões são desviados no Brasil por ano por conta da corrupção, um valor que permitiria multiplicar em muitas vezes os investimentos em diversas áreas, inclusive a saúde. Quando desperdiçamos recursos, impedimos que eles cheguem na ponta e contribuímos com as mazelas sociais. Corrupção mata! Dito isso, abro este espaço para cada leitor que queira contribuir com sugestões sobre práticas e oportunidades de melhorias. Serão todas muito bem-vindas!