O Diretor Executivo e membro do Conselho de Administração da Fundação Zerrenner e Vice-Presidente de Saúde e Benefícios da Ambev, Edson De Marchi, conta sobre o processo de disrupção na gestão de saúde dos 75 mil beneficiários da Ambev, que já permitiu, entre outras coisas, abrir a composição dos custos de saúde, promover o redesenho da rede e ampliar o atendimento assistencial no local de trabalho, além de estruturar uma base de dados para desenvolvimento de programas de prevenção, aumentando a qualidade dos serviços de saúde com redução de 30% destes custos per capita em apenas um ano.
O que levou a Fundação Zerrenner a ter uma mudança de atitude em relação à gestão da saúde dos colaboradores da Ambev?
Edson De Marchi: Cheguei à Fundação em 2014 com o desafio de assumir a gestão de suas operações, especialmente em relação à questão da saúde. Para tomar pé da situação, pedi alguns estudos para entender o que de fato estava acontecendo nos últimos anos. Impressionava o montante de recursos que a gente destinava anualmente para a saúde, cerca de R$ 350 milhões, e a grande quantidade de prestadores de serviços. Como cogestora da Ambev, a Fundação administra e fornece, gratuitamente, cerca de 75 mil planos de saúde para os funcionários e dependentes. Com uma grande capilaridade, a Ambev está presente em mais de 2,5 mil municípios, fato que adiciona um ingrediente de complexidade na área da saúde, pois não existe um operador no Brasil capaz de atender todos esses municípios. O montante de dinheiro investido anualmente para esse público crescia numa velocidade assustadora. Como se sabe, os custos com saúde têm crescido no Brasil em índices que superam entre três a quatro vezes a inflação. Olhando a evolução desse custo e a evolução da principal renda que temos, que são os dividendos da Ambev que financiam esses benefícios, percebemos que havia um problema sério a ser resolvido: o descasamento entre controle dos custos e das receitas. Em 2015 tínhamos a projeção de que precisaríamos vender patrimônio para financiar a saúde já em 2022. O Conselho entendeu que precisaríamos de um plano de ação para reverter o problema que os números nos mostravam. Como a saúde era terceirizada integralmente, tivemos que intervir fortemente nesses custos sem qualquer perda da qualidade dos serviços médicos. E esse foi o grande gatilho que nos levou à mudança na atitude: o susto que a gente tomou foi grande. Conhecíamos gestão, mas em saúde sabíamos apenas que precisávamos mudar o modelo que estávamos oferecendo. Então começamos a ouvir especialistas em gestão de saúde e tivemos um período de grande aprendizado.
A infraestrutura oferecida de rede e regulação de produtos de prateleira como a que vocês tinham, foi eficiente?
Edson De Marchi: Na hora que examinamos isso, começamos a encontrar incoerências. No mundo corporativo o paciente é, antes de tudo, um funcionário. Ele passa oito horas por dia na empresa e eu o conheço muito mais do que uma operadora de saúde. No caso de empresas com grande pulverização geográfica, até faz sentido oferecer uma ampla rede de atendimento como a prevista em modelos de pré-pagamento, mas esse modelo não fazia sentido para nós, que somos muitos em poucos lugares. Temos 30 localidades no Brasil que concentram 80% do pessoal. Diante disso, surgiu um novo questionamento. Queríamos uma rede mais enxuta, pois temos uma estrutura de potenciais pacientes distribuídos de forma mais concentrada, não fazendo sentido uma rede tão ampla. Isso foi uma premissa que passamos para as operadoras na época. As soluções de prateleira levaram à insustentabilidade de custos e não atendiam mais nossa necessidade. Percebemos também que não tínhamos as informações de forma transparente, éramos apenas o pagador de contas. Cerca de 60% dos custos em saúde em 2015 estava fechado na rubrica “MAT/MET” (materiais, próteses e medicamentos). Mas o que é isso? Em um processo de gestão você só consegue gerenciar algo quando você pode medir. Como pagar uma conta se eu nem sei o que está sendo cobrado? Além disso, entendemos que os incentivos do sistema de saúde também estavam distorcidos. O benefício acabou se transformando não apenas em uma necessidade básica das pessoas, mas também numa questão de “status”. Trata-se de um benefício que dá direito ao cuidado com a saúde, mas muitas vezes em lugares de custos altos sem qualquer justificativa de qualidade, apenas por ter melhor hotelaria. Quando uma pessoa adoece, o que precisamos de fato é de um bom médico em um bom hospital, com tecnologia adequada e protocolos corretos.
E qual a solução para resolver a questão da rede de atendimento e assumir de fato a gestão dos custos com a saúde?
Edson De Marchi: Começamos a repensar a ideia de voltarmos a ter um ambulatório dentro da fábrica e dos centros de distribuição e, a partir disso, criamos uma equipe médica própria para nos assessorar permanentemente, 24 horas por dia. Hoje, os médicos que nos ajudam garantem que 75% dos eventos médicos que surgem nestes ambulatórios são resolvidos lá mesmo, com a vantagem de minimizar o risco de expor os funcionários a um ambiente hospitalar hostil, evitando o quanto possível que convivam com outras pessoas doentes, entre outras coisas. Nosso objetivo é chegarmos a 39 ambulatórios em todo o Brasil e já estamos com oito. A questão é que não é fácil recrutar médico assistencialista, clínico geral. O Brasil formou especialistas demais e não existe a visão de um generalista e nem a disposição do profissional para isso e essa visão sistêmica faz toda a diferença. Paralelamente, em conjunto com o operador parceiro, decidimos rever a rede para adequar à nossa realidade: temos poucos locais com muita gente. Também é importante termos as contas abertas porque é imprescindível geri-las. O operador parceiro entendeu. Hoje nas análises comparáveis a gente sabe o que gastou, e essa abertura faz parte do acordo com a operadora. Mas, mesmo sabendo o que foi consumido em saúde, ainda faltava saber as razões dos gastos, o porquê. E, como antes de ter pacientes eu tenho funcionários, posso aplicar um questionário para saber o que a pessoa tem, o que já teve e os riscos familiares. Com base nessa anamnese, que aponta claramente os riscos da população, é possível desenvolver programas de prevenção.
Foi possível fazer isso a partir da estrutura médica ou foi necessário criar a estrutura médica ocupacional para entender a realidade de saúde da sua população?
Edson De Marchi: A própria legislação impõe a qualquer empresa com determinado número de funcionários o dever de ter uma infraestrutura de médicos do trabalho dentro da entidade operacional, que varia de acordo com o número de empregados. O problema é que esse é um médico do trabalho, cujas atribuições, inclusive burocráticas, tomam boa parte do seu tempo e não sobra quase nada para ele se dedicar à área assistencial, ficando restrito basicamente à avaliação médica das condições do trabalho e da parte admissional e demissional. Além disso, falta qualificação de clínico geral para que este profissional preste a assistência médica ao pessoal. Estamos resolvendo isso, investindo na capacitação assistencialista de nossos médicos, por meio de um programa de qualificação construído a quatro mãos com a Escola Paulista de Medicina.
Você disse que foi fundamental transformar o dado em boa informação e que a partir desse resultado vocês fizeram um redesenho. Certamente ainda tem muito por vir, mas o que você já pode falar em resultados obtidos?
Edson De Marchi: O projeto está sendo implementado em fases, mas já apresentou um resultado incrível, que foi a gente assumir a gestão, ou seja: estruturar a base de dados e padronizá-la; solicitar a abertura de dados para as operadoras, contratualmente; promover o redesenho de rede eliminando prestadores que estavam fora do que a gente realmente precisava; montar a Controladoria Médica que permitiu a avaliação de processos e fazer a cogestão do contrato junto com as operadoras, dentro da qual determinados procedimentos eletivos são aprovados pelos nossos médicos previamente. Isso tudo gerou uma economia de um terço do nosso custo, cerca de R$ 100 milhões, no período de um ano.
Você conseguiu uma deflação da saúde por cuidar da saúde.
Edson De Marchi: Exatamente. E posso dizer que para este ano o nosso budget prevê uma nova deflação porque a segunda onda, que é estender os braços dos médicos para o campo, via ambulatórios, ainda está em fase de expansão. Acreditamos que essa onda vai ser tão inteligente e eficiente quanto a anterior. Mesmo não tendo ainda estimativa para isso, temos certeza de que vai gerar um impacto relevante, sobretudo pela praticidade de levar a estrutura para dentro da fábrica e reduzir a necessidade de atenção extramuros. Consultas e exames poderão ser feitos “em casa”. Mais de 90% da nossa equipe é composta pelo pessoal de campo, como vendedores e operadores. Essas pessoas passarão a ter um médico para chamar de seu. Isso é um sonho. Esse médico vai entregar o nº do celular dele para as pessoas para ser acionado quando for preciso dar uma orientação. Hoje nós sabemos quais são os nossos problemas e temos a chance de gerir e criar um plano de ação que antes não tínhamos.
É um novo modelo assistencial de fato! Que mensagem você acredita que já é possível deixar para as empresas a partir da experiência da Ambev?
Edson De Marchi: A grande mensagem, tentando tocar os CEOs de grandes empresas, é a seguinte: a única variável que a gente tem ação é sobre o nosso custo, então jamais terceirize a única alavanca sobre a qual você tem ação porque custo é algo que você consegue gerenciar e, lembre-se, só é possível gerenciar aquilo que você mede. Encontre uma maneira formal de obter transparência nos custos da saúde porque senão você não vai gerir nada. Não deixe isso para outro cuidar. O custo é seu, o risco é seu e a conta já é sua.