De volta para o Futuro? Em pouco mais de uma semana tive acesso a duas notícias que me deixaram bastante reflexivo e até um pouco envergonhado. Para ser justo, diria que não foram apenas as notícias em si, mas a reflexão à qual me levaram a fazer.
A primeira delas, elaborada pelo site GeHosp, trazia a cobertura de debate promovido pelo Colégio Brasileiro de Executivos, Capítulo Paraná (CBEXs-PR). A chamada para a matéria trazia o título “Modelo de saúde deve se concentrar no paciente, diz especialistas.” Já a segunda matéria abordava algo como “planos de saúde investem em saúde”.
Dissecando um pouco mais o assunto, acredito que o título da primeira matéria possa passar duas mensagens distintas. Em primeiro lugar, para os desavisados ou leigos em temas de saúde, pode passar a ideia de uma grande e genial nova descoberta. Inclusive por ter sido dita por “especialistas”, conforme destaca a notícia. Portanto, para estes, é possível que colocar o paciente como foco do sistema soe como a descoberta da pólvora. Ou, indo de um extremo a outro, seria apenas uma abordagem superficial por parte de quem a redigiu? Nem uma coisa e nem a outra. Na realidade, a afirmação em questão é de uma obviedade ululante e, se nos aprofundarmos um pouco, vergonhosa. Vejamos o porquê.
O indivíduo (na condição de paciente ou não) é necessariamente o foco de todo o sistema e sempre deveria ter sido assim, independentemente do modelo de saúde e a qual canto do mundo se esteja referindo. Afinal, é por ele e para ele que todos os demais atores da cadeia existem. O indivíduo é o “fim” e nós, médicos, hospitais, unidades de medicina diagnóstica, indústria, órgão regulador, distribuidores, corretores, consultores, etc., somos meros “meios.” Nós todos existimos para, em primeiro lugar, servir diretamente ou indiretamente àquele que é o propósito de todo o sistema.
Porém, quando colocamos em perspectiva o quanto nos desviamos coletivamente desta missão, a aparentemente óbvia afirmação acima nos traz uma outra reflexão. Não sei dizer como e quando isto aconteceu, talvez aos poucos nas últimas décadas. A memória mais remota e simbólica que tenho de uma medicina centrada no paciente é do meu pai contando sobre a dedicação de meu avô Genival Londres no exercício de uma medicina dedicada, acolhedora e humana. Assim como de outros tantos renomados médicos de sua geração. Naturalmente, ainda existem profissionais com esta mesma pratica, mas, infelizmente, parece ser cada vez mais uma exceção.
Nosso erro coletivo foi lentamente permitir que se tirasse o paciente do papel de protagonista. De forma puramente intuitiva, acredito que, em primeiro lugar, a tecnologia foi aos poucos e lentamente ocupando um papel que é indelegável ao médico, o do diagnóstico. A tecnologia não o substitui, mas confirma o diagnóstico médico. Que fique bem claro que a tecnologia médica tem um papel fundamental, mas jamais deveria ter ocupado o papel de protagonista em substituição ao médico.
Em segundo lugar, vieram as operadoras de planos de saúde e seus acertos e erros. E lá se vão algumas décadas desde então. Embora não seja tema deste texto, o advento das mesmas foi absolutamente fundamental para a democratização do acesso à saúde suplementar. Isto é inquestionável. Porém, junto vieram algumas estratégias que, com o tempo, se mostraram equivocadas, contribuindo para a atual “anomimização” da medicina. A principal delas a meu ver foi se utilizar leis de mercado onde elas não cabem. Refiro-me à lei da oferta e demanda. O grande número de médicos interessados em ter credenciamento médico fez com que os honorários dos mesmos fossem deprimidos ao longo dos anos. Quando a oferta é maior do que a demanda o preço cai. Esqueceram de entender que, além de médico não ser commodity, eles não são iguais entre si (o que a meu ver torna um erro crasso o tabelamento de honorários apoiado inclusive, pasmem, por entidades médicas). E aí se estabelece o perfeito ciclo vicioso: ao se pagar mal, via de regra se angaria médicos com menor qualificação. E estes, ao serem mal remunerados (sem falar nos mal formados) ocasionam um atendimento frequentemente impessoal e relâmpago, seguido de uma batelada de exames, muitos dos quais dispensáveis caso houvesse conhecimento sobre a história do paciente. O vínculo necessário, entre pacientes e médicos fica comprometido. Em suma, tudo menos o paciente no centro do sistema. E, ao fim e ao cabo, o barato se torna caro.
Pois bem, passemos ao segundo exemplo citado no início deste texto onde se alardeava que planos de saúde iriam cuidar da saúde. Para quem não conhece as mazelas do sistema de saúde, isto pode parecer uma piada de mal gosto. Para outros, um pleonasmo que, segundo os gregos, significa redundância. Seria o mesmo que dizer “subir para cima ou descer para baixo” e assim por diante. Nem tanto. O fato é que, com raríssimas exceções, o que temos são intermediários financeiros que pagam por despesas exclusivamente relacionadas a doenças. Portanto, se muito, temos seguros de doença. Aliás, já redigi aqui que, exatamente por este motivo, meu plano de saúde individual é apenas de cobertura hospitalar. Sim, porque na ausência de políticas de saúde na concepção dos mesmos, eu apenas enxergo valor na preservação dos grandes riscos, leia-se despesas hospitalares. Um absoluto equívoco histórico e estratégico na medida em que remediar custa mais caro que prevenir.
Por fim, a notícia da divulgação de um seminário do Instituto Latino Americano de Gestão em Saúde (Inlags), coroava as notas com o título: “Workshop Atenção Primária à Saúde: de Volta ao Futuro” (que aliás, ocorrerá no próximo dia 27 de abril no Rio de Janeiro). Pois bem, a primeira definição de atenção primária à saúde (APS) foi proposta na Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, realizada em Alma-Ata, na República do Cazaquistão. Segundo a referida declaração, “os cuidados primários de saúde são cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade.” O que merece reflexão e autocritica mais uma vez é o fato de estarmos tratando de um conceito que surgiu há mais de 40 anos, mas que praticamente não é praticado no sistema de saúde suplementar. Poucos assumirão, mas é coletivamente vergonhosa esta constatação.
Para concluir, acertam os organizadores do Inlags quando se referem ao seminário em questão como sendo “de volta ao futuro”. Assim como já vimos, também as abordagens sobre o paciente no centro do sistema e planos de saúde cuidando de saúde. Ao fim e ao cabo, chega-se à conclusão de que é preciso voltar no tempo, resgatar e reeditar conceitos e práticas que foram se perdendo ao longo dos anos, tornando o sistema insustentável.
Antes de encerrarmos, que fique claro que o lucro em atividades de saúde não deve ser visto como algo proibido. Aliás, como escutei há muitos anos de Carlos Salles, ex-presidente da Xerox do Brasil e do Movimento Brasil Competitivo, “o lucro é uma obrigação ética”. Assim como devem ser os meios para chegar a ele. No final do dia, lucro, ainda que fundamental, só pode ser aceito como consequência de boas práticas e bons princípios. Parece que estamos começando a entender de vez que, todas as vezes que o colocamos à frente dos princípios, ele agiu na contramão da sustentabilidade do sistema. Isto porque erradamente os meios viraram fins. O único fim deve ser o paciente. Parece que estamos começando a entender que cuidar da saúde do paciente é o único caminho viável. Sejam benvindos de volta ao futuro!