O inferno somos nós | Arquitetos da Saúde
Reflexões para Ontem

O inferno somos nós

Recentemente fui convidado a participar de um grupo de whatsapp envolvendo lideranças na área da saúde. A partir de suas linhas, nos beneficiamos de uma série de publicações e estudos atualizados, bem como opiniões sobre temas distintos. Porém, tem me impressionado aquilo que não está escrito, mas que pode ser lido nas entrelinhas do que escreve alguns membros do grupo.  A partir do olhar para este microcosmo consigo entender o porquê de boa parte das amarras da nossa saúde, sejam públicas, privadas ou relacionadas ao que poderia ser a convergência de ambas.

Há algum tempo tenho pensado em escrever um artigo sobre as forças ocultas que nos congelam na construção de soluções sistêmicas e fui buscar inspiração no livro dos brilhantes Leandro Karnal e Monja Coen, cujo título ouso pegar emprestado para este artigo.  Entre vários exemplos dos pré-conceitos nitidamente embutidos em algumas das falas, destaco alguns apenas para exemplificar o meu ponto de vista.

Em determinado momento, foi divulgada uma importante iniciativa de uma respeitada entidade de classe representativa de hospitais diferenciados em nosso país. Tratava-se da divulgação de um trabalho de indicadores assistenciais iniciado há alguns anos e que tem como objetivo dar transparência aos mesmos, bem como contribuir para a mensuração da qualificação destas instituições como benchmark entre elas.

Imediatamente membros do grupo se apressaram em comentar as falhas do processo de apuração do referido trabalho, ao invés de reconhecer a importância desta iniciativa, ainda que longe do ideal. Afinal, como bem diz Mario Sérgio Cortella, “não nascemos prontos, nascemos não prontos e formamo-nos ao longo do tempo.” Portanto, teria no mínimo sido mais elegante que o tema fosse abordado sobre está ótica. Na prática, este exemplo traduz inúmeras outras posturas que têm como primeira reação a crítica visando desacreditar uma boa iniciativa, seja ela de que elo da cadeia for.

Em outro momento, um dos membros do grupo, em resposta à minha reflexão de que as entidades de classe, independente de seus representados, deveriam procurar reconhecer a parte boa de toda a cadeia da saúde e não cegamente o todo de sua parte, retrucou que se teria que abrir as caixas pretas das operadoras de planos de saúde.  Podemos ter várias críticas às operadoras, e como já disse em textos pregressos eu também as tenho. Mas o comentário em questão desconsidera o processo de regulação e as obrigações legais inerentes às mesmas, que incluem a publicação de informações relevantes (balanços, indicadores financeiros, índice de desempenho, entre outros tantos disponibilizados pelo órgão regulador). Ou seja, é mais fácil encontrar um motivo para criticar e nada mudar do que para se libertar de preconceitos e enxergar algo de positivo em tudo aquilo que não nos representa individualmente, mas que obrigatoriamente faz parte do sistema.

Dito isto recorro a Leandro Karnal, que exemplifica muito bem aquilo que acomete algumas das lideranças da área da saúde: “as pessoas projetam todas as suas dores no julgamento dos outros. O procedimento mais rápido e eficaz para impedir uma reflexão crítica… é apontar os defeitos dos outros. Localizar o mal no outro é a panaceia universal.” E na área da saúde, isto fica muito claro. E é por isto que acredito que não caminhamos em uma agenda positiva com pautas sistêmicas. O preconceito e a consequente ausência de confiança nos levam a esta vergonhosa desarticulação sistêmica. Se nós mesmos não nos entendemos minimamente, por que haveria a imprensa e a Ministra Carmen Lucia (só para citar o exemplo recente da resolução normativa envolvendo franquias e coparticipações) de nos entender e deixar com que cheguemos a um consenso? O fato é que os espaços são ocupados e nós, enquanto partícipes desarticulados, somos os únicos responsáveis para que haja interferência indevida e frequentemente infundada do ponto de vista técnico.

Chego à triste conclusão que na área da saúde é proibido confiar, é proibido elogiar, é proibido reconhecer, é proibido mergulhar na realidade dos demais e enxergar os desafios também sobre suas óticas. Ao contrário, coletivamente preferimos agir como diz o pensador francês, Paul Valéry: “a pessoa que julga não vai ao fundo de nenhuma questão.” Como se reconhecer algo de positivo no vizinho fosse um sinal de traição, a instalada miopia corporativista e preconceituosa de inúmeras de nossas entidades e seus representados. Esta postura impede tantas outras como, por exemplo, escrever uma única linha conjunta sobre um tema que seja relacionado à sustentabilidade de nosso sistema de saúde. Falta-nos, por completo, um pensamento comum.

Concordo com a Monja Coen quando diz que “acredita que seja muito importante haver uma reinversão de valores, dando maior ênfase às coisas boas, para que possamos desenvolver uma cultura da paz.  Se quisermos criar uma cultura da paz e de tolerância, temos que colocar em contato pessoas que são… diferentes, para que possam estudar…juntas, questionar-se sobre as soluções, tanto para suas áreas especificas quanto para as áreas coletivas.” Quem sabe esta reflexão possa servir de provocação para a realização de um evento ou retiro (por mais estranho que possa parecer talvez este seja o nome mais adequado) envolvendo lideres (despidos de seus sobrenomes institucionais) que se atrevam a construir uma agenda conjunta para a saúde do nosso país? Devaneio de minha parte? Muitos dirão que sim. Mesmo assim prefiro provocar e ousar do que me acomodar e continuar aceitando que “o inferno somos nós.”

Adriano Londres

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