O tema da contratualização entre operadoras de planos de saúde e prestadores de serviços médicos no âmbito da regulação da saúde suplementar tem quase 15 anos, mas está longe de estar equacionado. Recentemente, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) comunicou mais uma iniciativa neste sentido, a partir da instituição da Câmara Técnica de Contratualização e Relacionamento com Prestadores (Catec).
Esta medida se configura como uma entre inúmeras outras tantas já adotadas visando a busca de um maior equilíbrio e clareza nas regras entre as partes. A recorrência desta discussão reflete a falta de confiança entre as partes e, ao fim e ao cabo, a incapacidade de construírem instrumentos minimamente satisfatórios entre si.
Recordo-me das primeiras discussões sobre o tema contratualização em 2003 quando participava, na condição de suplente da Confederação Nacional de Comércio e Serviços (CNC), da Câmara de Saúde Suplementar da ANS, órgão permanente e consultivo de participação da sociedade que tem como finalidade auxiliar a Diretoria Colegiada da ANS em discussões sobre o setor.
Na ocasião, onde prevalecia a ausência de regras mínimas e a presença de práticas questionáveis por parte de determinadas operadoras de planos de saúde, recordo-me de assistir diretores das entidades de classe representativas de prestadores de serviços médico-hospitalares depositando neste tema suas esperanças quanto a resolução de todos os conflitos de natureza comercial.
De minha parte, ainda que considerasse fundamental a celebração de contratos formais, não acreditava que a contratualização por si seria a “bala de prata” que iria dirimir todos os conflitos da relação comercial entre as partes. Um contrato com regras claras é absolutamente fundamental, mas, quando se geram expectativas demasiadas em relação aos mesmos, é sinal de que existem outras questões a serem tratadas fora do âmbito juridico. Entre essas incluo, do ponto de vista subjetivo, a efetiva construção de relações de confiança e, do ponto de vista objetivo, a revisão do modelo (fee for service) de remuneração.
Por sua natureza, esse modelo leva a erros de cobrança e pagamento em função de sua enorme complexidade e variabilidade. Assim como gera ineficiências e desperdícios, na medida em que é pautado por produção e não por valor. Ou seja, a mera contratualização do que é desalinhado, desconfiado, complexo e confuso, não tornará a relação mais alinhada, confiável, simples e eficaz. Este era o quadro em 2003 e, salve raras exceções, pouco mudou nestes últimos 15 anos.
Pois bem, a partir da publicação da Resolução Normativa 42, de 2003, que estabelecia “os requisitos para a celebração dos instrumentos jurídicos firmados entre as operadoras de planos de assistência à saúde e prestadores de serviços hospitalares”, realizamos junto ao advogado renomado e consultor estratégico do Sindicato de Hospitais do Município do Rio de Janeiro (SINDHRIO), Dr. Sérgio Coelho, uma análise detalhada de cada um dos contratos. O resultado, apresentado por nós à diretoria da ANS na época foi desanimador. Absolutamente nenhum dos contratos analisados estava em conformidade com o que previa a resolução. Portanto, uma ótima ideia que, na ocasião, nascia morta.
Mais de 10 anos depois da primeira tentativa de se iniciar as discussões sobre contratualização, a Presidência da República sancionou a Lei 13.003, de junho de 2014, alterando a Lei 9.659 de 1998 e reforçando a obrigatoriedade de contratos escritos e detalhados entre as operadoras e os prestadores, com as obrigações e responsabilidades específicas, estimulando assim maior transparência e equilíbrio entre as partes.
Mas isto não foi suficiente. Em dezembro de 2014, com o mesmo objetivo, a ANS publicou a resolução normativa 363. E exatamente na mesma data, a ANS publicou outra resolução normativa, a de número 364, definindo o IPCA como índice de reajuste pela ANS a ser aplicado pelas operadoras de planos de assistência à saúde aos seus prestadores de serviços de atenção à saúde em situações específicas.
Novamente em dezembro de 2015, a ANS publicou a Instrução Normativa número 61 dispondo sobre a regulamentação dos parágrafos 2º e 3º do artigo 7º da Resolução Normativa 364, de 11 de dezembro de 2014, que dispunha sobre o Fator de Qualidade a ser aplicado ao índice de reajuste definido pela ANS para prestadores de serviços hospitalares.
E não parou por aí. Nesta mesma linha, também em dezembro de 2015, foi publicada a Resolução Normativa 391, alterando a resolução normativa 364 e dispondo sobre a definição de índice de reajuste pela Agência Nacional de Saúde Suplementar em situações especificas.
Mesmo depois de tantas resoluções, leis e instruções normativas nos últimos anos, o assunto permanece inconclusivo. Por este motivo, a ANS acaba de publicar no Diário Oficial da União a Portaria 08, criando a Câmara Técnica de Contratualização e Relacionamento com Prestadores (Catec) “com a finalidade de colher subsídios para avaliação da necessidade de revisão e/ou aprimoramento da regulação setorial acerca da contratualização entre as operadoras de planos de assistência à saúde e os prestadores de serviços”. Entre os temas a serem discutidos estão a utilização de tabelas de referência, a não adaptação dos contratos à regulamentação da Lei 13.003, de 2015, glosas sobre o faturamento (que conforme dados do Observatório da Anahp, vêm aumentando), outros modelos de remuneração como pacotes e a possibilidade de instauração de procedimento de intermediação dos conflitos entre as partes.
De minha parte, sou absolutamente favorável a medidas que contribuam para um melhor equilíbrio entre as partes, e, como já disse, enxergo a questão da contratualização como algo importante neste sentido. Porém, deixo aqui algumas considerações, reflexões e sugestões.
Particularmente, entendo que regras prevendo prazos de faturamento, pagamento e tratamento de glosas, entre outros pontos, são importantes. Definem o que considero regras de convivência. E estas têm que ser negociadas entre as partes e não impostas como continua a ser feito por algumas operadoras. Na boca miúda, muitos hospitais me confidenciam que, para “atender” as determinações da ANS, várias operadoras inserem estas regras no que chamam de “manual do prestador”. Ato continuo, fazem referência ao mesmo no contrato, mas, na pratica, driblam a negociação, muitas vezes impondo suas condições e, consequentemente, preservando o desequilíbrio.
Em segundo lugar, faço uma reflexão sobre o que considero um desserviço das entidades de classe representativas de prestadores. Tenho dificuldade em entender porque estas não realizaram, ao longo destes anos, um novo levantamento sobre estas não conformidades, apresentando-as em seguida a ANS. A meu ver, cabe as entidades realizar, de forma responsável, estudos tecnicamente fundamentados que garantam o sigilo dos respondentes, evitando represálias e retroalimentando o órgão regulador. Infelizmente, sou levado a crer que persiste o velho cacoete de achar que cabe a ANS resolver toda as mazelas do sistema. Um enorme equívoco. Para ser ajudado, há sempre que dar a sua cota de colaboração. Portanto, fica a sugestão de que as entidades de classe se comprometam em subsidiar a recém instituída câmara técnica.
Em terceiro lugar, preocupa-me particularmente a discussão de indexação de contratos. Entendo que este ponto em particular deve ser tratado e negociado livremente entre as partes. A indexação, conforme já citado em artigo anterior, traz o risco de perpetuar uma inércia inflacionária que alimenta reajustes futuros de mensalidades.
Por fim, uma reflexão que transcende o tema contratualização, para que não esqueçamos as prioridades estratégicas do sistema. Aliás, talvez por este motivo a própria ANS inseriu no nome da câmara técnica o termo “relacionamento com prestadores”, não se limitando apenas a debater a contratualização. Entendo que a melhor forma de preservar os interesses de uma instituição prestadora de serviços de saúde vai muito além da formalização de contratos em conformidade com determinações regulatórias. A sua sustentabilidade está no seu próprio compromisso com a garantia de entrega de valor, ou seja, a relação entre o resultado obtido pelo paciente e os custos econômicos da entrega.
Portanto, apenas para colocarmos em perspectiva: contratos são necessários e devem obrigatoriamente estar conformes. Isto é básico. Mas não esqueçamos que contratos são “meios”. Espero que este tema seja equacionado em definitivo, com a necessária participação e contribuição de todos, para em seguida sair de cena e ceder lugar às pautas mais estratégicas. Como bem resumiu, o vice-presidente do Conselho da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), Ary Ribeiro, durante o excelente 4º Fórum de Saúde Suplementar da Fenasaúde, é fundamental abordar e enfrentar o desafio da organização da cadeia de assistência com foco na entrega de valor ao paciente. Que tal dedicar parte do tempo desta câmara técnica em para debater estas questões?