Chama atenção a enxurrada de matérias, comentários e opiniões que surgiram sobre o Programa Mais Médicos (PMM) a partir da decisão do governo de Cuba de retirar do Brasil os profissionais que, em 2013, vieram atuar em regiões carentes sem cobertura assistencial. Segundo a mídia, o governo de Cuba informou que decidiu sair do programa social Mais Médicos citando “referências diretas, depreciativas e ameaçadoras” feitas pelo presidente eleito Jair Bolsonaro à presença dos médicos cubanos no Brasil.
Participo de alguns grupos de saúde no whatsapp e perdi a conta da quantidade de mensagens a respeito das falhas, acertos, desafios e sugestões relacionados ao programa em questão. Não me proponho aqui a repeti-los ou resumi-los até porque este tema já foi bastante coberto e até se tornou um tanto exaustivo. Quero apenas usar este acontecimento para fazer algumas reflexões sobre algo que está por trás deste programa e de tantos outros temas relacionados à saúde. A meu ver, a releitura de mensagens de líderes do setor relacionadas ao PMM mostra a histórica e crônica falta de gestão estruturante e estratégica sobre temas diversos relacionados à saúde. Se isto não fosse suficientemente grave, outra matéria veiculada em um grande telejornal escancara ainda as reais intenções por trás desta iniciativa.
Contextualizando o tema Saúde no Brasil, cabe lembrar que esta pasta que movimenta um orçamento ministerial de mais de 130 bilhões de reais em 2018, tem sido vítima frequente de politicagem, corporativismo, ideologia e amadorismo (para não falar em corrupção). Se de um lado se trata da pasta com o maior orçamento, de outro posso crer que esteja entre as campeãs da “dança das cadeiras” ministeriais. Vejamos o tamanho absurdo neste sentido. Tivemos 46 ministros nos últimos 65 anos, 22 ministros nos últimos 30 anos e 5 ministros nos últimos 4 anos. Portanto, nos três cortes acima, a média de 1,3 a 1,4 anos por ministro ultrapassa todos os governos, ideologias, planos econômicos, projetos sociais, etc. Ainda que o SUS apresente vários aspectos positivos e inúmeros avanços em seu relativamente curto tempo de existência, ele tem sido a maior vítima (e consequentemente a população brasileira) de tamanha descontinuidade, desmandos de seus gestores e falta de planejamento de longo prazo.
Segundo o programa de mídia digital “O Sistema: Um Retrato da Saúde no Brasil #3: O SUS” do renomado médico Drauzio Varella, “a cada troca, todos os cargos de confiança mudam também. Isso cria uma fragilidade e desorganiza a gestão. A mobilização política é o que pode deter, ou pelo menos reduzir este desmando. A falta de visão da saúde como um projeto estratégico deve mudar.” Neste mesmo vídeo o ex-Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, reforça que “O SUS é uma política de Estado que não pode estar sujeita aos caprichos e aos ditames das conjunturas.” Esta tem sido nossa realidade, inclusive em vários aspectos relacionados ao PMM que se revelou, infelizmente, como uma política de Estado…de Cuba. Vejamos o porquê.
Segundo matéria do citado telejornal, “telegramas (da Embaixada Brasileira em Havana) mostram que o programa foi proposto por Cuba e já era negociado um ano antes da Presidente Dilma apresentá-lo em 2013. Ainda segundo o documento, para não precisar de aval do Congresso, o governo Dilma decidiu incluir a Organização Panamericana de Saúde (OPAS) no negócio. O Brasil contrataria a Opas que contrataria Cuba que contrataria os médicos, o que acabou acontecendo.”
“Os telegramas mantidos em sigilo por cinco anos mostram que as negociações foram secretas para evitar reações da classe médica brasileira e do Congresso. Os documentos confirmam que o governo Dilma aceitou quase todas as exigências do governo cubano e propôs inclusive fazer os pagamentos diretamente do Brasil a Cuba sem passar pela sede da OPAS em Washington, nos Estados Unidos. Os documentos mostram também a preocupação de Cuba com a exigência de um processo de avaliação dos médicos no país.”
A realidade é dura e nos mostra um lobo vestido de cordeiro, ou seja, o mal travestido de bem. Afinal, a “ajuda humanitária” de Cuba se traduz num acordo comercial e atropela não só o Congresso (o que representa atropelar a sociedade brasileira), como os próprios médicos brasileiros e as regras aqui estabelecidas para o exercício da Medicina para aqueles que se formam no exterior. Aliás, tenho escutado de algumas pessoas que as informações noticiadas recentemente já eram de amplo conhecimento. O político e filósofo Edmund Burke dizia que “tudo o que é necessário para o triunfo do mal é que os homens de bem nada façam.” Gostaria de saber o que dirão o Congresso, a OPAS e as entidades médicas que, tudo indica, parecem ter sido enganados este tempo todo. Talvez já soubessem, mas optaram por silenciar. Sinceramente, não sei. Entretanto, com a divulgação destas notícias encontram-se numa encruzilhada e devem uma resposta à sociedade brasileira.
A falta de políticas de saúde dá margem a acontecimentos como este, que está longe de ser isolado por mais emblemático que este seja. Não questiono o fato de que muitos destes profissionais (por não terem cumprido leis brasileiras relacionadas à profissão médica, me recuso a chama-los de médicos ainda que eventualmente tenham tido esta formação em Cuba), tenham contribuído em algum grau com as demandas da população em área de vazios assistenciais. Mas precisamos ser intolerantes com práticas onde os fins justificam os meios. Isto simplesmente não é ético e ponto. Deixando de lado as defesas ideológicas daqueles que me criticarão, pergunto qual a diferença entre isto e roubar porque se tem fome? A necessidade de assistência é tão legítima e premente quanto a fome. Mas os meios para atendê-los não.
Quanto aos grupos de saúde de whatsapp que citei no inicio deste texto, que fique bem claro que vários dos renomados representantes deixaram valiosas contribuições e reflexões a respeito dos desafios do sistema público de saúde. Pude aprender e refletir sobre inúmeras demandas que, pelo meu tímido conhecimento do funcionamento do SUS, conhecia em parte. Entre aquelas citadas, destaco a necessidade de se rever de forma séria e técnica temas como a qualidade da formação médica, a regionalização na distribuição e racionalização de estruturas e processos em saúde no país, a regulamentação da carreira de estado para médicos, a gestão política das instituições públicas e filantrópicas, a estruturação de modelos de atenção com enfermagem treinada na ponta e apoiada por centros acadêmicos, a regulamentação da Telemedicina, o foco na eficiência e resolutividade da atenção básica para melhoria das condições do paciente evitando desperdícios e o alto custo dos procedimentos e outras tantas brilhantes sugestões que com certeza serão apresentadas de forma estruturada e propositiva.
Aliás, como bem disse o Ministro José Gomes Temporão no vídeo do Dr. Drauzio Varella aqui citado, “temos tido uma visão pobre, estreita de que saúde é gasto. Que pais queremos no futuro?” Respondo por mim: em primeiro lugar quero um país mais ético. Mas enquanto prevalecer a mentalidade que viabilizou o PMM e outras tantas iniciativas malconduzidas e inacabadas, estaremos à mercê de uma visão curta, superficial, irresponsável e ideológica.
Sim, sabemos que é comum políticos preferirem investir mais em temas politiqueiros cujos resultados (ainda que muitas vezes enganosos) sejam colhidos naquele ou no próximo mandato, do que em políticas de saúde estruturantes cujos frutos transcenderão seus mandatos. Mas a culpa disto tudo, muito mais do que deles, é principalmente nossa como cidadãos brasileiros.
Cabe a nós, e principalmente àqueles que têm reconhecido conhecimento técnico sobre os imensos desafios do SUS, pensarmos se queremos iniciativas como o que se revelou ser um “Programa Mais Money” (PMM) ou aquelas verdadeiramente alinhadas com as demandas dos pacientes em primeiro lugar, afinal, tanto tem se falado nisto ultimamente. Por que não instituirmos aqui mesmo no Brasil com as competências existentes de nossas lideranças, “Programa(s) Mais Saúde” (PMS)?
Em tempo, a ajuda “humanitária” de Cuba escravizou profissionais de saúde (na medida me que lhe retira 75% dos seus salários), proibindo-os de trazer suas famílias para o Brasil e obrigando-os a debandarem subitamente do país. Aliás, gesto altamente “humanitário” com os pacientes até então atendidos. Agora entende-se o porquê. Era um contrato fraudulento e teve que ser rescindindo unilateralmente às pressas. Jogar dentro da lei e da forma efetivamente humanitária estava fora dos interesses de Cuba.