Arquitetos da Saúde

Vacina contra a COVID-19: mesmo quem pode pagar deve esperar

O início da vacinação trouxe muita esperança. Uma das dimensões deste sentimento está traduzida nas inúmeras postagens por parte daqueles que, seguindo as regras sanitárias, já foram contemplados com a primeira dose.

De outro lado, o início da vacinação também trouxe ansiedade, principalmente entre aqueles que estão mais para o final da fila. Há poucos dias um amigo me ligou para comentar que achava um absurdo o seu plano de saúde não cobrir a vacina. E, mais recentemente, um familiar muito próximo me questionou se eu iria comprar a vacina em clínica particular caso viesse a estar disponível no curto prazo. Pois bem, para surpresa de ambos, a minha resposta foi negativa. Explico.

Em relação à cobertura pelo meu plano de saúde da vacina contra a COVID-19, não vejo como devida neste momento. Certo ou errado, meu plano jamais cobriu qualquer das vacinas disponibilizadas ou não pelo Programa Nacional de Imunização (PNI) do Ministério da Saúde. Ou seja, para ser no mínimo coerente, eu e todos aqueles que acatamos esta condição, deveríamos ter feito este questionamento a cada surgimento de uma nova vacina, não apenas no contexto da vacina do coronavírus.

Entendo que planos de saúde começam a enxergar a importância de efetivamente direcionarem suas estratégias para o cuidado com a saúde de seus beneficiários, em cujo contexto caberia um questionamento sobre a cobertura de vacinas em geral, desde que necessariamente respeitadas as regras do PNI. Mas, por ora, ainda prevalecem planos de doença que raramente cobrem despesas com prevenção e muito menos com vacinas.

Independentemente do ponto acima, a minha resposta negativa às duas perguntas recebidas está fundamentada principalmente nos seguintes pontos:

  1. A vacinação contra outras doenças como a poliomielite, rubéola, varíola, sarampo e mais recentemente o coronavírus é uma ação que cabe ao PNI. Segundo o Blog da Saúde do Ministério da Saúde, antes do PNI, “criado com o objetivo de coordenar essas ações, o Programa – em 40 anos – transformou o Brasil em um dos países que oferece o maior número de vacinas do mundo”;
  2. Estamos num cenário onde não há oferta suficiente para toda a população, devendo, portanto, respeitar-se critérios técnicos na priorização da vacinação;
  3. Como muito bem pontuou o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto em recente entrevista para a Folha de São Paulo, “é uma imoralidade que pessoas com dinheiro tenham acesso a vacina antes.” Isto porque o acesso passa a ser priorizado, pelo menos em parte, para aqueles que podem pagar em detrimento daqueles que mais precisam do ponto de vista técnico;
  4. A oferta desta ou qualquer outra vacina no ambiente privado somente seria aceitável em situações em que há suficiência de oferta a partir do PNI, o que claramente não é o caso no contexto do coronavírus;
  5. Em recente comunicado, o presidente da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), João Alceu Amoroso Lima, foi preciso ao lembrar que já foram divulgadas várias manifestações, tanto do Poder Executivo quanto do Legislativo, assim como no âmbito da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), de que não haverá venda de vacinas para laboratórios e entidades privadas, pelo menos inicialmente, quando a vacinação em massa requerida deverá ser coordenada”;

Questionamentos como os que recebi e, tenho certeza, você que me lê também, deixam latentes a ausência de reflexões a respeito da ética assim como dos limites do mercado. Aliás, sobre temas desta natureza, recomendo a leitura do livro “O que o dinheiro não compra”, escrito pelo filósofo e professor da Harvard University, Michael Sandel, onde ele explora alguns questionamentos entre os quais “como decidir que bens podem ser postos à venda e quais devem ser governados por outros valores que não os de mercado?”

Em tempo, aproveitei a oportunidade para indicar tanto ao meu amigo quanto ao familiar próximo a leitura do livro de Sandel. Enquanto isto aguardo, sem pressa, o meu lugar na fila.