Basta surgir um tema polêmico para termos a real dimensão da imensa distância (em todos os sentidos) que existe entre os atores da cadeia de saúde suplementar. A bola da vez se traduz em ideias que foram registradas em um documento recentemente vasado na imprensa e que retorna à mídia tendo em vista o lançamento de um trabalho intitulado “Mais Saúde”, de autoria da FenaSaude.
Na visão das operadoras de planos de saúde e suas entidades representativas, existe a necessidade de destravar a saúde suplementar, estimulando o seu crescimento e facilitando o acesso para aqueles que gostariam de comprar produtos mais acessíveis. E, neste sentido, enxergam a segmentação de produtos como uma das alternativas.
De outro lado, uma visão que pode ser mais bem resumida por um manifesto público intitulado “Planos de Saúde preparam ataque contra consumidores, pacientes e médicos.” Segundo este documento, “os planos querem impor uma nova lei cujo ponto central é uma proposta radical: liberar a venda de planos de menor cobertura, segmentados, os chamados ‘pay-per-view’, ‘modulares’ ou ‘customizados’”.
Dito isto, gostaria de desenvolver a minha visão exclusivamente sobre o tema segmentação de planos de saúde. Como ponto de partida, destaco alguns aspectos legais:
- O artigo 196 de nossa Constituição Federal diz que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”;
- O artigo 197 por sua fez destaca que “são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”;
- Mais adiante, o artigo 199 destaca que “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada”;
- Em 03 de junho de 1998, foi sancionada a Lei 9.656/98 que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. Em seu artigo 12, já está prevista a segmentação de produtos na medida em que “são facultadas a oferta, a contratação e a vigência de planos ou seguros privados de assistência à saúde que contenham redução ou extensão da cobertura assistencial… em relação ao plano referência definido no art. 10”. Estão previstas 12 formas de segmentação assistencial entre as quais destaco, para fins deste texto, a ambulatorial e a hospitalar.
Feita esta breve introdução compartilho alguns pontos adicionais que considero importantes para esta reflexão:
- Como cidadão brasileiro, a constituição do meu país me garante a saúde como um direito;
- A livre contratação de um plano de saúde privado em momento algum exclui os direitos que tenho como cidadão e o dever que o Estado tem comigo;
- A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) lançou há praticamente um ano o Programa de Certificação de Boas Práticas em Atenção à Saúde. Esta iniciativa visa “incentivar as operadoras de planos de saúde a desenvolverem um cuidado cada vez mais qualificado aos seus beneficiários através da implantação de redes de atenção ou linhas de cuidado em atenção primária certificadas por entidades acreditadoras reconhecidas pela ANS”. Até o momento, o programa não foi executado por qualquer operadora de saúde;
- Segundo a ANS, apenas pouco mais de 2,5 milhões de beneficiários de planos de saúde (de um total de 47 milhões) estão inscritos em programas de promoção de saúde e prevenção de riscos e doenças;
- Ao priorizarem até aqui a vertente financeira e não assistencial, boa parte das operadoras cometeram um erro histórico. Focaram no racionamento e não na racionalização. Custos impagáveis foram o resultado. O tempo tem nos mostrado que a redução de custos de forma sustentável será necessariamente consequência do efetivo cuidado com a saúde das pessoas, algo que as empresas contratantes finalmente começaram a abraçar;
- Felizmente, recentemente algumas operadoras também começam a oferecer produtos atrelados a políticas de saúde bem definidas e com previsão de incentivos alinhados ao cuidado adequado. Como consequência, suas mensalidades são menores do que aquelas de produtos desprovidos destes princípios e espera-se que a evolução de seus custos seja menor do que dos produtos prioritariamente existentes.
Em relação à segmentação propriamente dita:
- Mantenho há mais de 30 anos um destes produtos. Refiro-me a um seguro individual com cobertura exclusivamente hospitalar (grandes riscos). A minha permanência neste produto se dá, entre outros motivos, por não reconhecer a existência de um plano que seja efetivamente de saúde. Portanto, por que pagar quase o dobro para inserir apenas o pequeno risco (consultas, exames, etc)?;
- No setor suplementar, a Saúde já é legalmente segmentada desde a criação da Lei 9.656/98;
- A segmentação não é uma “bala de prata”. Ao mesmo tempo acho um equívoco rotulá-la como o “vilão”. No contexto atual, pode sim ser uma alternativa para aqueles que desejariam ter algum grau de cobertura, mas efetivamente não têm condições financeiras para arcar com uma das doze opções de segmentação já prevista em lei;
- Que fique claro que não vejo a segmentação como uma solução ideal, mas enquanto se constroem soluções alinhadas com políticas de saúde que esperamos que tragam um outro resultado em termos de saúde e, consequentemente, de comportamento de custos, por que não também oferecer como opção produtos mais restritos? Repito, estamos falando de opção e não obrigação;
- Do ponto de vista simbólico (e lembro que somos seres simbólicos) talvez um passo simples em termos de alinhamento de expectativas (principalmente do consumidor) fosse a proibição da utilização do nome “plano de saúde” por parte daqueles que oferecem apenas coberturas financeiras para procedimentos e tratamentos de doença e/ou aqueles que oferecem produtos desprovidos de comprovadas e validadas políticas de saúde (atestadas inclusive pelo programa criado pela ANS). A estes caberia um nome mais alinhado com o que entregam, como por exemplo seguro de procedimentos ambulatoriais ou seguro de procedimentos e tratamento de doenças.
Por fim, faço algumas reflexões que considero o ponto de partida para a busca de algum entendimento. As faço a partir do que detecto nas entrelinhas nas batalhas que são instaladas de tempos em tempos, como esta agora em ebulição, sobre a qual apenas desenvolvi o tema segmentação:
- Efetivamente existe uma repulsa e desconfiança entre os atores da cadeia de saúde suplementar. Basta o surgimento de um tema espinhoso para que isto recrudesça;
- Precisamos caminhar sem perder de vista a perspectiva este fato. Apenas reconhecê-lo ajuda na melhor compreensão do cuidado com a forma. Caso contrário, boas ideias, conduzidas de forma equivocada, podem morrer no caminho;
- Fico com a percepção de que, para alguns, tudo aquilo que vem das operadoras de planos de saúde gera sempre uma primeira reação imediata onde prevalece o sentimento do “vem de operadora? Já sou contra. Não vou nem discutir”. Por mais que estas cometam seus erros, acho isto pouco produtivo;
- Entidades de classe de operadoras de planos de saúde por sua vez têm pecado na forma de se comunicar e conduzir suas válidas iniciativas. Por aparentarem o caminho do segredo e, por vezes, com pouco diálogo com os demais elos impactados, acirram a resistência histórica com seus pares (ou ímpares como ouvi recentemente);
- A meu ver, pecam ainda por esquecerem que “o ótimo é inimigo do bom”, no sentido que trazem soluções muito distantes do contexto atual. Precisamos evoluir caminhando com o que o americano chama de “baby steps”. Vamos aos poucos, afinal não nos confiamos o suficiente para darmos passos largos. E os passos de consenso inicial são poucos. Exemplificando esta ideia com um simples exemplo prático, por que não tratar da segmentação do plano ambulatorial apenas propondo a exclusão da cobertura de emergência?
Para terminar, gostaria de saber o que pensam entidades que frequentemente têm preferido se calar em contextos como estes. Refiro-me àquelas que representam hospitais, laboratórios, medicinas diagnósticas e cooperativas médicas, entre outras. Curioso ver que apenas as tidas como “os extremos” se posicionam. De um lado, prioritariamente as seguradoras e às vezes medicinas de grupo (negócios) e, de outro, órgãos de defesa do consumidor e algumas poucas entidades de profissionais de saúde (assistência).
A reflexão acima é de algo ruim, afinal, aquelas muitas entidades que têm tanto uma “veia assistencial quanto de negócios”, sem desmerecer as demais, com certeza poderiam também contribuir para um melhor encaminhamento de temas como estes. Afinal, por necessariamente vestirem, em sua essência, estes dois chapéus, potencialmente seriam estratégicas na construção de consensos num momento de tão pouco diálogo.