Arquitetos da Saúde

Novos projetos, os mesmos problemas e os velhos erros

O projeto de lei nº 1.542, aprovado no dia 3 de junho pelo senado e encaminhado à câmara dos deputados, prevê a suspensão dos reajustes de preço de medicamentos por 60 dias e de todos os planos de saúde por 120 dias, inclusive o reajuste por faixa etária. Ele altera a lei 13.979/2020 que dispõe sobre as medidas de enfrentamento da pandemia do coronavírus.

É possível dizer que a motivação é muito justa, já que a crise econômica que se seguirá após a pandemia será sensível a todos. Independentemente do projeto de lei, houve algum movimento isolado neste sentido por parte de algumas operadoras e administradoras de benefícios, mas não se tratava de suspensão e sim de postergação a ser compensada à frente. Já nos planos empresariais tais medidas provavelmente estão ocorrendo de diversas formas pelo Brasil porque já é prática a livre negociação em contratos empresariais cujo reajustes não são regulados pela ANS.

O projeto de lei da forma como foi aprovado pelo senado deixa a cargo da ANS medidas regulatórias que visem a preservar o equilíbrio econômico-financeiro de cada contrato. Será alterada a data base do reajuste? Será feita uma compensação posterior no caso do reajuste por faixa etária? Serão aplicados pesos e medidas diferentes com base na sinistralidade apurada na operadora ou no contrato de cada empresa? Com certeza muitas controvérsias serão criadas se o projeto também passar pela câmara dos deputados.

Ao chegar na câmara no dia 5 de junho foi proposta a tramitação conjunta de outros dois projetos de lei números 3.216 e 1.970, ambos de 2020. O projeto nº 3.216 propõe que a suspensão do reajuste de medicamentos seja estendida até 31/12/2020 e o projeto nº 1970, apresentado em abril e bem mais polêmico, que é o alvo das reflexões e detalhamento deste artigo:

1.   Todos os planos de saúde terão reajuste regulado pela ANS.

Seria o fim da livre negociação nos contratos coletivos empresariais. Foi justamente a regulação do reajuste que limitou drasticamente a oferta de planos individuais, pois as operadoras não quiseram atuar num mercado altamente judicializado, com um rol sem teto de cobertura e reajuste regulado.  Ao se regular o reajuste dos planos coletivos, o preço sobe, parte da oferta desaparece e o mercado tende a se concentrar ainda mais.

2.   O reajuste máximo a partir de 60 anos passaria a ser um terço do valor estabelecido para a faixa imediatamente anterior.

Ora, se a partir de 60 anos o reajuste é indexado pela faixa anterior, logo todos os beneficiários menores de 60 anos vão financiar a diferença. É o que ocorre hoje com as 10 faixas estabelecidas por lei e pelo estatuto do idoso. Os mais jovens devem sim financiar o déficit dos mais velhos. É uma questão de mutualismo. Apenas é preciso considerar uma boa medida técnica para este mecanismo para não afugentar justamente aqueles que podem desistir do plano mais facilmente porque são jovens.

3.   O reajuste anual será limitado ao IPCA.

Determinar que o índice seja fixado por um indicador geral de inflação é tentar resolver um problema estrutural por indexação de preços. Isto nunca deu certo e nem muda a realidade dos números. A própria ANS sempre reconheceu que a inflação médica está acima da inflação geral e é a mesma constatação no mundo todo.

4.   Será vedado o reajuste por mudança de faixa etária e por sinistralidade.

Bom, se não há reajuste por faixa etária, então logo todos seriam cobrados por média? Cobrança por faixa etária é uma realidade dos planos individuais e apenas parte dos planos empresariais. Este último em boa parte pratica o preço pela média, a não ser quanto a uma parcela dos contratos de pequenas empresas. O efeito disto seria limitado a pouco mais de 34% dos beneficiários. Eliminar a sinistralidade significa que independentemente do equilíbrio financeiro de um contrato empresarial a operadora poderá aplicar apenas o IPCA? Me parece óbvio que as operadoras irão cancelar os contratos deficitários e manter apenas os superavitários, fragilizando ainda mais a proteção dos beneficiários de planos empresariais.

5.   A ANS deverá disponibilizar informações de desempenho.

Ora, já existe há bastante tempo o Índice de Desempenho da Saúde Suplementar – IDSS, desenvolvido pela ANS para se medir justamente o que o projeto prevê.

Eu não compreendo o funcionamento destes requerimentos de apensação (anexação, tramitação conjunta), mas se for obrigatória a tramitação conjunta, talvez o senado veja seu projeto inviabilizado pela câmara dos deputados com questões não relacionadas à intenção original que era dar algum alívio financeiro aos beneficiados diante da crise econômica causada pela pandemia.

Projetos que envolvem a viabilidade de um sistema com R$ 213 bilhões de prêmios em 2019, 47 milhões de beneficiários, segundo a ANS, e mais de 3,5 milhões de empregos diretos, segundo o Instituto de Estudo de Saúde Suplementar – IESS, não deveriam ser tratados sem considerar um estudo ou conhecimento mais profundo do setor de saúde suplementar ou no mínimo sobre as discussões de longa data sobre os aspectos que se pretendem alterar. Defender um ideal com grande apelo popular sem propor o “como” ou sem considerar os impactos colaterais, pode criar mais problemas do que resolver. Ao propor a tramitação conjunta, a câmara não considerou, por exemplo, que o possível aumento do desemprego neste momento tem correlação direta com o número de beneficiários. Foi assim na última crise econômica com mais de três milhões de brasileiros que ficaram desassistidos por não conseguir manter seu plano de saúde. Talvez tenhamos um número igual ou maior agora. Não seria prioritário aprovar o projeto original tal como veio do senado?

O legislador geralmente também desconsidera que qualquer medida de regulação forçada do custeio será empurrada em boa parte aos empregadores e ao mesmo tempo desprotege quem se pretendia defender. Durante 22 anos, desde a lei 9.656, saímos de pouco mais de 13 milhões de beneficiários para 47 milhões e isto graças às empresas que patrocinam total ou parcialmente este benefício. Hoje 66% dos beneficiários são de planos coletivos empresariais. Essas medidas propostas pelo projeto pesam mais sobre as operadoras ou sobre as empresas? Existiu algum estudo que embasou o projeto da câmara? Parece que não.

Se as medidas do projeto 1.970 forem votadas e aprovadas da forma como estão- propostas, o resultado disso pode acabar gerando um esvaziamento do setor regulado para uma alternativa de solução assistencial bem menos abrangente se comparada ao rol de coberturas da lei 9.656. Afinal, já é realidade a opção crescente dos cartões de desconto para procedimentos particulares mais acessíveis ou policlínicas que dão acesso local a quem não tem plano de saúde com um custo mais acessível, mas com muito menos cobertura em relação ao rol de procedimentos da lei 9.656.

Iniciativas disruptivas podem ser bem vindas, mas desde que passe por soluções ligadas ao incentivo correto aos prestadores de serviço como, por exemplo, a substituição do modelo de remuneração por fee for service por outros formatos em que o compartilhamento do risco seja mais equilibrado na cadeia produtiva de saúde. Ou modelos em que o beneficiário tenha um acesso mais assertivo aos serviços de saúde com o uso da tecnologia para monitorá-lo de forma integrada e que vá além do pico da doença ou das emergências ou das cirurgias eletivas. Um sistema que priorize a prevenção precoce.

Pensar em como uma legislação possa ir ao encontro de soluções assim requer esforço e aprofundamento, e seria um grande ganho para a discussão com a sociedade se o legislador em geral buscasse esta sustentação técnica.

A pandemia trouxe junto com todas as suas dificuldades latentes a oportunidade de repensarmos o modelo de acesso à saúde suplementar. É hora do setor se unir por sustentabilidade duradoura e aumentar a confiança. Se não for assim, de crise em crise teremos velhas ideias para os mesmos problemas.

Até tudo isto se resolver, talvez chegue tarde o socorro à sociedade em relação à suspensão dos reajustes dos planos médicos durante a pandemia.