O maior desafio do sistema de saúde suplementar está na organização da cadeia assistencial como foco na geração de valor ao paciente. Esta afirmação parece ser, cada vez mais, consenso entre os participantes do sistema. Reduzindo esta reflexão à realidade dos hospitais, chegamos ao desafio que enfrenta o diretor médico da instituição.
Conforme resolução de 2016 do Conselho Federal de Medicina (CFM) foram definidos “novos critérios para atuação dos médicos que ocupam o cargo de diretor médico nos estabelecimentos de assistência médica em todo o Brasil, atribuindo a eles a responsabilidade de atuar com objetividade na manutenção da qualidade da assistência médica e garantia de condições técnicas para o exercício ético da profissão. Pela nova norma, o diretor médico responde administrativa e eticamente pela organização e manutenção do funcionamento para o atendimento.”
Pois bem, iniciemos nossa reflexão lembrando que pacientes são pessoas físicas que não querem necessariamente códigos, governança ou procedimentos operacionais padrão. Pacientes (e suas necessidades, mazelas, sofrimentos, agudos ou crônicos) não entendem e não precisam entender a respeito de gestão de instuições de saúde, medicina, enfermagem, fisioterapia, etc.
Muitas vezes pacientes representam para as instituições de saúde e seus padrões, processos e normas, aquilo que a bola representa para o jogador de futebol : rola, escapa, quica. Se não fosse a bola, o futebol seria impecável.
Pacientes sempre têm um problema a ser resolvido objetivamente por alguém que ele precisa reconhecer, entender, confiar e, talvez, admirar. O que ele tem como expectativa é a eliminação da sua dor e a resolução do seu problema. Ele quer que tudo funcione, de forma individual, no tempo e na hora. Esse é o tal cuidado centrado no paciente. É isto que tem valor na sua ótica.
Refletindo sobre o tema, nos deparamos com a imensa quantidade de material disponível, seja na relação com gestão em saúde, gestão clínica, gestão hospitalar, governança, big data, blockchain e assim por diante. Excelente, pois denota interesse e importância crescente sobre o tema. Afinal, nunca se falou tanto em ter o paciente como centro de qualidade do serviço, sobre aquilo que significa valor para ele, sobre como capturar, identificar e monitorar esse valor em indicadores.
Pois bem, estando o paciente, como sempre deveria ter estado, no centro de tudo, empresas financiadoras, operadoras de planos de saúde e prestadores de serviços médico-hospitalares e seu conjunto de profissionais administrativos e assistenciais, deveriam estar em seu entorno. Imagino que alguns dirão, até com alguma razão, que esta visão é simplista. Mas permitam-nos essa redução apenas por este artigo. Sim, é de fato uma crítica mas com a pretensão de ser construtiva.
E aqui chegamos ao ponto central deste texto: como tornar tudo isso possível sem passar pela valorização do diretor médico que lidera tecnicamente as equipes multidisciplinares e multiprofissionais em quase todos os contextos de prestação de serviços hospitalares?
Não admira, nem surpreende, em parte, a situação que vivemos em que ninguém é responsável ao fim e ao cabo por nada, ainda que curiosamente tudo seja exigido, escrito e codificado, com crescente enfoque em prontuários eletrônicos e outras tecnologias de informação.
Mas existe algo que « nos salva », acertando tudo frente aos nossos erros, meio distante, quase abstrato ou lendário, mas despótico em suas exigências tais quais os deuses incas que exigiam sacrifício humano. Nos referimos ao tal do corporativo, à vertente de negócios de uma instituição de saúde, esse deus que se materializa à distância com times corporativos de segurança e qualidade do cuidado.
Vivemos hoje a anomia na responsabilização pelos cuidados dispensados. Quando você mentaliza alguém de suma responsabilidade em um hospital, alguém que possa agir de várias formas diretamente sobre o serviço que está sendo dispensado, afinal, em quem você pensaria? No longínquo e retratado diretor corporativo? No diretor geral ou executivo ou mesmo administrativo? Ou no diretor médico, legalmente conhecido como o responsável técnico perante órgãos legais?
Em um momento em que tanto se fala de atributos de governança corporativa, governança e gestão clínica, responsabilização e o celebrado e repetido ad nausean « paciente no centro do cuidado », como não colocar o diretor médico dentro das quatro linhas do campo?
Para que precisamos de gestores de saúde que não conhecem saúde ou mesmo doença? Ou que não têm formação técnica de base ou mesmo condição legal de se responsabilizar tecnicamente? Ou que não contextualizam, não dão relevância ou coerência externa e aplicabilidade, pois falta-lhes os componentes cognitivos das profissões da saúde, em particular da medicina, bem como falta o componente afetivo ainda que sobrem as habilidades de gestão ou de rituais de governança ? Apesar disso, esses gestores influenciam fortemente o resultado final de ações técnicas. E isto é mais agudo e grave no segmento hospitalar.
Como entender quem entende, avalia e dá feedback à percepção dos pacientes? E as direções, ou muitas vezes gerências técnicas, acossadas contra a parede por corporativos de qualidade e segurança, cujas faces, nomes, assinaturas estão acima de juízos críticos de cunho técnico? Com certeza não é isso que significa governança em toda a sua força conceitual.
Alguém imagina um engenheiro químico, civil, aeronáutico, naval ou nuclear imprensado por um CEO (financeiro puro ou fora de sua área específica)? Certamente a história da engenharia está cheia de precedentes assim, mundo afora. No passado e no presente e assim será no futuro, o resultado será sempre desastroso. Tudo pode ter dado errado na operação, mas legalmente tudo está correto segundo códigos e normas de compliance. E, no mais, pouco importa diram alguns, pois ao fim e ao cabo, talvez algum responsável ténico, diretor, gerente assine gerando conformidade no papel.
Com o frequente e atual rebaixamento da responsabilidade técnica ou direção médica à postura exclusivamente operacional em boa parte dos hospitais e operadoras de planos de saúde, observa-se a ausência de medição e comparação de indicadores como mortalidade ajustada por gravidade e tempo médio de internação, por exemplo? E taxas de infecção relacionadas a procedimentos ou taxas de reinternação hospitalar antes de três meses da alta? E qual seu custo administrativo? Para muitos isto é menos importante do que o conhecido EBITDA, ROI, receita, etc, que é o que se espera de um gestor em saúde. Será?
Apesar do clamor por accountability vivemos hoje uma anomia. E persistimos em não definir o que tem valor para aquele paciente, população ou empresa. Não estamos falando de valor econômico mas sim de valor técnico. Mas se não definimos valor, não o mediremos, monitoraremos e compararemos.
É lamentável nos perdermos nos labirintos puramente processuais, ainda que mal conduzidos por falta de conhecimento suficiente sobre a natureza dos processos e a realidade operacional a ser seguida e mesmo modificada. Como dizer que este é um ambiente ético sem termos valor técnico claramente apontado e não meramente compondo um organograma?
Enquanto não enxergarmos, monitorarmos e valorizarmos a presença e atuação responsável do diretor médico, faltará uma pedra fundamental no edifício inteligente, conectado e integrado que se pretende que sejam os hospitais do século XXI.
O fato é que não há como se falar em paciente no centro do cuidado e muito menos se falar em geração de valor ao paciente, sem falarmos no resgate efetivo da posição de protagonista da direção médica. Que fique bem claro que os CEOs têm um papel fundamental na otimização de resultados e busca de sustentabilidade das instituições de saúde. Mas, como nos disse um amigo recentemente, a característica mais desejável de um executivo na área de saúde deve ser ser a de compreender, gostar e valorizar os médicos. E, para tal, é fundamental que coloque a direção médica alinhada aos desafios da atualidade, no papel e com as devidas responsabilidades e reconhecimento que jamais deveria ter deixado de ter.
Enfim, está posto. Ou mudamos ou mudamos. Que tal começar com um quadro de boas vindas ao Paciente ?
Sr. Paciente, muito prazer, sou o Diretor Médico do Hospital.