Arquitetos da Saúde

Incentivos financeiros desalinhados: o freio de mão para o Valor em Saúde

No livro “Repensando a Saúde”, publicado em 2007, Porter e Teisberg definem valor em saúde como a “relação entre os resultados que importam para os pacientes e o custo para atingi-los”. Há mais de uma década falamos sobre este assunto no Brasil, mas o efetivo desempenho (resultado) nesta matéria não tem evoluído apesar do empenho (processo) de muitos. Os motivos são vários mas, para fins desta reflexão, gostaria de destacar um em particular que precisa ser necessariamente endereçado. Refiro-me aos incentivos financeiros conflitantes que nutrem os elos da cadeia e desnutrem o sistema como um todo.

Como muito bem colocou Clemente Nóbrega em um post recente “nada em saúde é desenhado a partir do que conta para o usuário final, como ocorre nos outros setores da economia. Saúde baseada em valor é uma tentativa de mudar isso. É nisso que operadoras, prestadores, órgão regulador e empresas pagadoras estão apostando. Tudo começa pela aferição de desfechos que são importantes para o paciente em cada condição médica.” Concordo com esta afirmação, mas me pergunto se seria possível construir indicadores de desfecho sem corrigir os incentivos financeiros atuais que frequentemente têm uma lógica contrária aos interesses do paciente?

Destrinchando um pouco mais esta questão, desenhamos o sistema (tenho dúvidas se devemos chamar o que temos de sistema) a partir de um olhar individual conectado por interfaces desalinhadas que não garantem o que é melhor para o paciente. Uma das formas de enxergar isto passa pelos modelos de remuneração em vigor. Podemos afirmar que, com raras exceções, estes foram desenhados a partir do que conta para nossos negócios e não para o paciente e, consequentemente, para as empresas que financiam grande parte do sistema.

Em matéria recente, o presidente do Hospital Israelita Albert Einstein, Sidney Klajner, disse que “o atual modelo de pagamento incentiva a aceitação de mais pacientes e a realização de mais procedimentos, mas isso não é sustentável. O modelo de valor é focado em evitar desperdícios (procedimentos desnecessários, prevenção de complicações e readmissões), e em aumentar a qualidade e a segurança.”

Nesta mesma linha, Sérgio Ricardo Santos, em seu recente artigo “Desfecho impertinente: para quem?” traz uma reflexão a partir de uma conversa sobre o desenvolvimento de desfechos clínicos onde os presentes foram cirurgicamente provocados por Romeu Domingues ao perguntar “os resultados estão muito bem acompanhados, a construção foi consistente, mas como vocês avaliam se os procedimentos foram indicados com pertinência?” Em seguida, Sérgio coloca que “as provas expostas de bons resultados assistenciais e boa gestão de custos não garantem se as intervenções sejam realmente necessárias. Bons desfechos em contextos indevidos geram valor para quem?” Indo além em seu excelente texto ele conclui: “não existe valor para o paciente, de fato, sem pertinência, sendo os modelos de remuneração baseados em volume os mais ricos meios de cultura para o mofo indesejado.”

De fato, não faz sentido discutir desfechos sem necessariamente incorporar a esta discussão à questão da pertinência. Mas como garantir a pertinência num contexto onde a remuneração é por volume? Seria possível caminhar nesta discussão sem obrigatoriamente equacionar os conflitos de interesse no modelo de remuneração prevalente onde a receita está pautada por volume?

Segundo afirmou Cesar Abicalaffe em um congresso de saúde suplementar no ano de 2019, “chegamos a um momento do nosso cenário em que é preciso sair da teoria e iniciar a prática. Falamos a mesma coisa desde 2006. Quando teremos coragem de iniciar o processo de mudança? Chega de falar, temos que começar a colocar em prática”.

Pegando um gancho na fala do Cesar, me parece que um importante “freio de mão” desta discussão está na dificuldade de efetivamente mudarmos os modelos de remuneração hoje em prática. Longe de achar que isto por si será suficiente, mas acredito que a ausência deste enfrentamento explica o porquê de não termos tido o desempenho esperado, apesar do empenho de muitos.

Felizmente existem alguns poucos exemplos neste sentido, mas gostaria de destacar um específico do qual tenho conhecimento. Refiro-me à unidade Vergueiro do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, construída “100% baseada em valor e no desfecho clínico”, conforme entrevista do então diretor executivo da unidade, Luiz Henrique Mota, à revista Visão Saúde. Segundo Mota, “percebemos que todos os processos do setor eram baseados no fee for service, o que impediu que avançássemos mais rapidamente. Foi preciso desenhar tudo do zero, em uma grande, cocriação complexa e trabalhosa.”

Este processo foi construído com total transparência junto às operadoras e já conta com um painel de indicadores assistenciais e de gestão que são acompanhados por elas. Mas, a meu ver, o grande diferencial para se obter sucesso, esteve na clareza de saber por onde começar na tão falada discussão de valor em saúde. E isto só foi possível a partir da eliminação do modelo de remuneração pautado pelo fee for service, onde os incentivos econômicos são por volume.

A regra hoje na unidade Vergueiro é de remuneração por procedimentos cirúrgicos com previsibilidade de custos e compartilhamento de riscos onde estão inclusas complicações e reintegrações em até 30 dias. E isto tudo foi desenhado com a participação de médicos diferenciados, aderente ao modelo proposto, bem como a diretrizes, protocolos, definição de materiais etc.

Talvez esteja aqui a resposta para um passo fundamental no longo caminho a ser trilhado na discussão efetiva de valor em saúde. Comecemos pequenos, mas necessariamente a partir da correção dos incentivos conflitantes enraizados nos modelos de remuneração prioritariamente praticados. Se de um lado isto talvez não seja o único passo a ser dado, de outro se faz absolutamente necessário. Sem ele, muitos não sairam do discurso. Em última análise, corrigir incentivos é o caminho inadiável para alinhar os ganhos individuais com o que é melhor para o paciente, assim como para o contratante. Ao mesmo tempo, representa o caminhar na direção de mais eficiência para o sistema. É preciso destravar este freio de mão para sairmos do discurso. Sem isto, valor em saúde continuará no campo das ideias.