Arquitetos da Saúde

Financiadores da Saúde: Vítimas ou Culpados?

Recentemente comentei sobre o questionamento do presidente de uma grande empresa quanto ao futuro do sistema de saúde suplementar, tendo em vista custos crescentes, cada vez mais incompatíveis com o poder de compra daquela (e de tantas outras) empresas. Mas afinal, as empresas, verdadeiros financiadores deste sistema (responsáveis por quase 70% dos planos de saúde existentes), são vítimas ou culpados pelo quadro atual de custos de saúde? Acredito que todos os stakeholders reúnem ambas as características. Todos, sem exceção, reclamam dos custos de saúde, mas efetivamente muito poucos têm uma agenda de “obrigações” no sentido de dar a sua contribuição. Não é diferente no caso das empresas. Vejamos o porquê.

Empresas são vítimas diretas da falta de confiança e consequente ausência da construção de soluções de valor entre operadoras de planos de saúde e prestadores de serviços médico-hospitalares. São ainda aquelas que efetivamente assumem os riscos inerentes aos custos de saúde, assim como do somatório de ineficiências e desperdícios do sistema, na medida em que isto se reflete, ano após ano, em reajustes incompatíveis com sua capacidade de pagamento. São vítimas do modelo de remuneração de seus corretores que são premiados com mais comissão, quanto maior for o reajuste as suas apólices.

Se por um lado são vítimas, por outro lado as empresas têm enorme responsabilidade pelas dificuldades crescentes no custeio do plano de saúde de seus colaboradores.  Arrisco-me a dizer que são os principais responsáveis na medida em que são os verdadeiros financiadores do sistema. Porém, ao longo dos anos, frequentemente agiram de forma passiva na condução deste tema.

Sob a ótica da representação, as empresas estão assistidas muito aquém das suas necessidades. A participação das mesmas em diversas frentes disponíveis na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), por exemplo, é historicamente pífia. Basta consultar, por exemplo, as atas de reunião da Câmara de Saúde Suplementar, órgão consultivo da ANS, onde todos os stakeholders têm a possibilidade de contribuir. Entidades como CNI e CNC – representantes de empresas da indústria, comércio e serviços – pouco contribuíram ao longo dos últimos anos.  Algum sinal de mudança parece existir recentemente e, ainda que louvável, o mesmo chega com anos de atraso.

Ainda na esfera da representação, uma outra forma de confirmar a inaceitável ausência da voz das empresas está nas consultas públicas disponibilizadas pelo órgão regulador.  Os principais protagonistas históricos nesta frente têm sido as operadoras de planos de saúde e os órgãos de defesa do consumidor. Estes dados são públicos e estão à disposição na ANS. E onde estão as empresas? Por que também não se utilizam deste importante canal para colocar suas contribuições? Por que não participam ativamente na medida em que são aqueles que financiam o sistema? Por que reclamam se sequer participam?

Recordo-me de eventos que promovi na última empresa onde trabalhei exatamente com o objetivo de “provocar” as empresas a assumirem um papel de protagonistas na condução de gestão de saúde de suas populações. Em um destes eventos, trouxe uma diretora da ANS e pedi a mesma, antes do início, que embarcasse nesta boa provocação. Não foi surpresa verificar a reação de muitos dos presentes, representantes de grandes empresas nacionais e multinacionais, ao saberem que poderiam acessar a ANS. Novamente, pergunto-me quantas vezes nos últimos anos, comparativamente aos demais atores da cadeia de saúde suplementar, as empresas efetivamente bateram na porta da ANS para debater assuntos de seu interesse? Arrisco-me a dizer que, novamente nesta frente, a participação foi tímida.

Do ponto de vista da qualidade assistencial, quantas empresas, no momento de solicitarem estudos aos seus corretores e consultorias, exigem informações sobre a qualidade dos prestadores médico-hospitalares? Quantas empresas exigem que lhes seja garantida uma rede com instituições de saúde acreditadas por órgãos nacionais ou internacionais? Indo além, quantas empresas demandam informações a respeito de indicadores de desfecho da rede de prestadores das operadoras, de forma a poder lhes auxiliar na escolha de melhores prestadores? Recordo-me de um trabalho do qual participei que sugeri à empresa que incluísse em sua RFP a obrigação das operadoras em fornecer indicadores de desfecho de sua rede de prestadores. Não foi surpresa verificar que todas as operadoras passaram ao largo desta demanda sem uma única linha a respeito, nem mesmo para justificar que prestadores de serviços médico-hospitalares não o tem, ou se o tem, não o divulgam. E fica por isso mesmo!

Por fim, falemos um pouco sobre a gestão de saúde populacional das empresas. Quantas a têm? Quantas assumem o necessário papel de co-gestora da saúde de seus colaboradores? Quantas interagem do ponto de vista assistencial com operadoras e prestadores? Quantas integram informações ocupacionais com assistenciais? Quantas criam incentivos para aqueles que têm bons hábitos, lembrando que mais da metade dos custos de saúde de um individuo tem relação com hábitos de vida? Quantas empresas têm a saúde como um de seus valores institucionais?

Até pouco tempo, em relação a estas questões, recordava-me apenas de um único caso: o Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Além de dispor de uma estrutura fantástica de cuidado e apoio à saúde do colaborador, parte da bonificação destes estava atrelada a indicadores de saúde.  Não foi surpresa entender o porquê desta instituição, enquanto ainda no modelo de pré-pagamento ter ficado três anos sem reajuste em seu plano de saúde.  Mais recentemente outras instituições passaram a buscar este mesmo caminho de mudança de modelo de risco (de pré para pós-pagamento) e protagonismo na gestão de saúde de seus funcionários, gerando resultados muito interessantes também.

Se por um lado as empresas foram muito mais responsáveis do que vítimas do comportamento de custos de suas apólices ao longo dos últimos anos, por outro vejo uma mudança recente e fundamental acometer grandes empresas. E este é um bom caminho. É um caminho sem volta que irá ainda contribuir para que colaboradores sejam chamados à responsabilidade quanto à sua saúde.

O despertar do financiador de saúde nos levará às mudanças disruptivas muito alardeadas, mas pouco praticadas até então. Serão as empresas, a meu ver, as indutoras das necessárias mudanças de incentivos e comportamentos, que contribuirão para a sustentabilidade do sistema de saúde suplementar. Serão as empresas as provocadoras de uma onda de geração de valor ao longo da cadeia de saúde suplementar.