Marcos Bosi Ferraz é médico e escritor de livros e artigos sobre o sistema de saúde brasileiro. Foi professor e Chefe da Disciplina de Economia e Gestão em Saúde do Departamento de Medicina da UNIFESP e membro do Conselho de Administração do Grupo Fleury. Nesta entrevista ele discorre sobre a franca e rápida transformação observada na saúde que já produz impactos na nossa sociedade. A ponta de um enorme iceberg de mudanças e disrupções que serão progressivamente observadas nos próximos cinco a dez anos. Leia a entrevista completa!
No livro “Dilemas e escolhas do sistema de saúde”, publicado há mais de dez anos, você discorre sobre dilemas e desafios na saúde. Em que sentido nós evoluímos, estagnamos, ou mesmo andamos para trás?
Marcos Ferraz: Nosso sistema de saúde evoluiu bastante nestes últimos dez anos, graças não só ao enorme avanço do conhecimento nas áreas das ciências da saúde, mas também devido à rápida transformação que temos observado em nossa sociedade decorrente da incorporação e utilização crescente de novas tecnologias de informação e comunicação. E estamos apenas observando, ainda, a ponta do iceberg. Enormes mudanças e disrupções em nosso sistema de saúde, e mesmo na sociedade, serão progressivamente observadas nos próximos cinco a dez anos. Esta evolução, no entanto, não foi percebida ou disponibilizada para parte muito relevante dos beneficiários do sistema de saúde. Em especial, no que tange às questões clínico-econômicas que dão sustentação e equilíbrio a este sistema de saúde (público e suplementar), evoluímos muito pouco. Acredito até que em alguns aspectos involuímos devido não apenas à importante e prolongada crise econômica que estamos vivenciando, o que evidencia e acentua a escassez relativa de recursos (própria e duramente sentida por um país em desenvolvimento num mundo globalizado devido às tecnologias de informação e comunicação), mas também e principalmente pela falta de conscientização de nossa sociedade sobre os limites econômicos e disparidade social de nosso país. A completa falta de uma visão acordada de médio e longo prazos para nossas enormes carências socioeconômicas e educacionais, e que reconheça nossos limites econômicos e a disparidade social, aliados à irreal crença e culto aos direitos ilimitados do cidadão e ao paternalismo do Estado brasileiro, contribui para que políticas públicas aditivas, complexas e parciais ao atual sistema só propicia um aumento da entropia geral. Redirecionar este grande navio para mares mais previsíveis e numa direção acertada se constitui no verdadeiro desafio. Em resumo, enfrentamos os mesmos dilemas de dez anos atrás, mais críticos hoje, pois escolhas mais difíceis (mesmo que fundamentadas nas melhores evidências técnico-científicas disponíveis) terão que ser feitas por bom período.
Qual o papel das empresas, como grandes patrocinadores dos planos de saúde, em relação à pergunta anterior?
Marcos Ferraz: Creio que as empresas de modo geral, e os cidadãos, têm um papel vital a desempenhar em prol do sistema de saúde. Contribuir para a educação do cidadão e fazê-lo entender que cada um de nós é o maior interessado na própria saúde e que nossos direitos não são ilimitados. Contribuir para que indivíduos entendam a sua responsabilidade com sua própria saúde e que vivam num ambiente estruturado na forma de mutualismo de repartição simples será fundamental. A responsabilidade do uso consciente e adequado do sistema de saúde é dever de cada um. Lembro uma frase de meu livro que expressa bem este conceito: ” A decisão individual afeta o coletivo e a decisão coletiva impõe restrições aos indivíduos”. É claro que além da educação, empresas e entidades de modo geral têm a obrigação e oportunidade de, ao reconhecer e seguir os marcos legais, regulamentares vigentes e ético-morais de nossa sociedade, propor e utilizar incentivos que favoreçam a crescente responsabilidade individual com a própria saúde e o uso racional dos escassos recursos disponíveis em nosso sistema de saúde. Ao mesmo tempo, empresas e demais entidades têm o dever de contribuir e sugerir melhorias nestes marcos regulamentares existentes em busca de um sistema saúde que atenda minimamente aos anseios de seus beneficiários.
E os indivíduos? Você considera que existem tecnologias disponíveis para ajudá-los no processo?
Marcos Ferraz: Cada vez mais os indivíduos serão envolvidos no processo decisório em saúde. Não apenas devido ao crescente avanço em tecnologias de informação e comunicação, mas também decorrente de outras inovações tecnológicas já disponíveis, mas que irão aumentar de forma exponencial em quantidade e qualidade. A chegada de sensores, robôs (dos mais simples aos mais complexos dentro e fora do sistema de saúde, mas que impactarão nossas decisões e nossa saúde), internet das coisas, 5G, blockchain, são exemplos de um novo mundo que se avizinha e que contribuirão para transformar radicalmente o sistema de saúde que hoje temos. O cidadão já está sendo e será cada vez mais impactado por esta transformação em curso. Acredito que haverá uma crescente responsabilização do cidadão pelos atos e ele será premiado pelo que acreditamos que seja um “bom comportamento” (este será um desafio a vencer, como sociedades definirão o que é este bom comportamento, alguns exemplos são fáceis e regulamentos de incentivo ou limitações já existem). Também poderão ser estimulados a adquirir conhecimento para justificar diferentes agravos às suas contribuições “fiscais” para equilibrar o risco adicional que proporcionam por não seguirem recomendações aceitas e fundamentadas pelas melhores evidências técnico científicas existentes. É claro que a prática de incentivos deve sobrepor a outra alternativa. Dois aspectos críticos podem moderar a velocidade de implementação deste novo sistema de saúde e a sociedade terá que progressivamente estar apta a debater e decidir sobre a questão da privacidade de dados e a segurança dos mesmos, bem como da chegada de novo mundo tecnológico. Há riscos claros e precisamos debatê-los e nos proteger, porém, como sabemos não há como bloquear certos avanços tecnológicos, em especial num mundo com enormes interesses econômicos.
Como você enxerga hoje o papel da judicialização na saúde, inclusive o uso de critérios para tomada de decisões?
Marcos Ferraz: Temos evoluído nesta questão, mas muito aquém do que necessitamos. E os impactos de um processo que pretende corrigir distorções defendendo o direito individual hoje se constitui num grande desafio para gestores públicos, em especial gestores estaduais, que comprometem parte de seu recurso já orçado para correções de pretensas injustiças (algumas reais) individuais. Precisamos como sociedade entender que não há recurso sobrando, o mesmo é finito e ao reconhecermos uma injustiça cometida, certamente a realocação deste recurso irá ocasionar outras várias com afetados desconhecidos, em especial num ambiente de extrema carência econômico-financeira. É claro que há casos onde o direito individual deve e precisa ser respeitado, mas ainda precisamos evoluir muito. No meu modo de entender a interpretação de nossa constituição cidadã, que garante direitos entendidos por alguns como ilimitados e as deficiências na elaboração e implementação de políticas públicas de forma precária num Brasil tão diverso e socialmente injusto, proporcionam esta distorção que tenta ser corretiva. Precisamos, de fato, é reinterpretar alguns dos preciosos princípios doutrinários de nossa constituição à luz do atual e novo sistema de saúde que teremos com a chegada de algumas maravilhas tecnológicas. Se não fizermos isto num tempo adequado, quem sabe a própria inovação e incorporação tecnológica nos auxilie a reduzir a ser mais e mais eficientes e ao mesmo progressivamente responsabilizar cada vez mais o cidadão no que tange aos seus deveres com relação à sua própria saúde, reduzindo progressivamente a responsabilidade do Estado! No limite do abuso, às vezes, me pergunto se o fornecimento de uma alimentação adequada, saudável e gratuita para todos os cidadãos também não é uma responsabilidade do Estado, pois certamente afeta a saúde das pessoas (entre outras coisas)!