Arquitetos da Saúde

Desregulamentação dos corretores de plano de saúde: hora de refletir sobre deveres mais que direitos

“Acredito no seguro e na força dele para o desenvolvimento do País. Precisamos desregulamentar e desburocratizar o setor, aumentar a competição, garantir segurança jurídica e, acima de tudo, tornar o seguro um produto simples e acessível à população”. Estas foram algumas das palavras ditas pela titular da Superintendência de Seguros Privados (Susep), Solange Vieira, durante sua cerimônia de posse em março último.

Tenho acompanhado à distância a repercussão, junto às entidades de classe representativas, da medida provisória 905 que desregulamentou recentemente a profissão de corretor de seguros. Diversos interlocutores têm se posicionado no sentido de que a condução deste processo poderia ter sido mais bem organizada, evitando pegar a todos de surpresa. Sem entrar no mérito da necessidade de mudança, isto de fato não nos pareceu razoável. Muito provavelmente também por este motivo, observa-se um movimento para tentar revogar a medida editada pelo presidente Jair Bolsonaro.

Independentemente da forma e de seus questionamentos, de tudo que li até o presente momento, o que enxergo como mais importante foi a mensagem do Diretor de Ensino do Sindicato dos Corretores do Rio de Janeiro (Sincor RJ), Arley Boullosa, em vídeo divulgado pela entidade. Disse ele: “A categoria precisa se qualificar, precisar estudar. É isso que vai levar a gente para frente, independentemente do cenário que vai acontecer no futuro. O que diferencia o corretor qualificado, o corretor que realmente atende a sociedade, é o ensino. É saber o que está falando. É saber de que forma vai proteger a sociedade.” Infelizmente, este foi o único depoimento que li que traz a necessária reflexão sobre os deveres (e não apenas direitos) dos corretores de seguros.

Parabéns ao Prof. Boullosa pela lucidez e coragem. Com raras exceções (pelo menos na área de saúde), o fato é que o corretor não gosta de se qualificar. Como forma de estimular a participação destes profissionais em eventos de capacitação, promovidos por entidades representativas da categoria, têm sido recorrentes sorteios diversos incluindo, com frequência, automóveis. Triste constatar que a mera busca de conhecimento em prol do melhor atendimento aos clientes não parece ser estímulo suficiente para este fim.

Voltando ao tema de desregulamentação dos corretores, o que muda na prática no mercado de planos de saúde corporativo especificamente? A resposta é simples: o corretor competente vai continuar a operar, tendo apenas sido retirada a barreira de entrada. Aliás, barreira esta que, na prática, infelizmente já não existia para muitos que haviam criado a sua “desregulamentação caseira”. Afinal, não são raros os casos em que corretores penduram em suas estruturas, e debaixo de seu registro de Susep, um monte de profissionais para trabalhar, muitas vezes desprovidos da necessária qualificação. Se isto não bastasse, há aqueles ainda que “alugam” seus registros. A meu ver, o curso de formação e atualização de corretores (Funenseg) e/ou outros que venham a ser criados no rastro da desregulamentação, deveriam passar a ser obrigatórios para certificar e reciclar, em menor ou maior grau, todos aqueles que atuam com seguros.

Na prática, o efeito colateral da falta de treinamento, vai muito além da venda mal assistida. Mas, pensando bem, para que se qualificar se os agenciamentos oferecidos pelas seguradoras chegam a 300% (sim, no caso de clientes de pequeno e médio porte, o corretor chega a receber o valor de três vezes a fatura do plano de saúde)? Ou seja, os números não nos deixam mentir: corretores são pagos para vender estimulando o rouba-monte entre eles num cenário de perda de beneficiários nos últimos cinco anos. Para ser justo, conheço apenas uma operadora que passou recentemente a premiar corretores de planos de saúde pela retenção de clientes. Isto sim, um incentivo alinhado e não predatório.

O fato é que é preciso resgatar o espírito do papel do corretor. Como ponto para reflexão registro o depoimento que me foi dado estes dias pelo amigo Reynaldo Brandt. Ao falar de seu pai, ele lembrava: “Como corretor de seguros, visitava seus clientes sistematicamente. Diferentemente dos corretores atuais, ou simplesmente vendedores de seguros, ele os visitava para conhecer suas necessidades e características. Assim sendo, a cada dia da semana visitava um grande cliente. Conhecia as instalações de ponta a ponta, sabia onde estavam os riscos de acidentes, de incêndio, de furtos, de prejuízos. A partir deste conhecimento, propunha melhorias no ambiente e redução do custo das apólices. Trabalhava pelo cliente, ao mesmo tempo que mantinha um ótimo relacionamento com as seguradoras, num jogo ganha-ganha para todas as partes. “

Naturalmente, existem exceções.  Aqueles que já atuam consultivamente, agregando conhecimento técnico e estratégico, não têm o que temer. Muito pelo contrário, ao deixar o mercado se autorregular (falamos sobre isto mais à frente), estes que têm efetivamente um compromisso com a entrega e não apenas com a venda, sairão em vantagem, pois deixaram de ter concorrentes que apenas se preocupam com a venda.

Voltando ao setor de saúde suplementar, onde o normativo regulatório além de extenso é complexo e dinâmico, faz-se necessário atualização constante, sob pena de (des)orientar as empresas contratantes em relação às estratégias na gestão de seu plano de saúde.

Analisando outras atividades econômicas, as entidades representativas de corretores deveriam direcionar seus esforços para aprender com aqueles que já praticam a autorregulação. A Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais (ANBIMA), por exemplo, vem exercendo há anos esta função de forma voluntária. Entre as realizações, criou dez códigos de regulação e melhores práticas, tornando-se ainda muito reconhecida pelas certificações que realiza como a CPA 10CPA 20, CEA e CGA. O efeito prático disto é que empresas do mercado financeiro simplesmente não contratam profissionais que não tenham certificações financeiras. E isto também precisa acontecer na área de corretagem de seguros.

Ainda que tardiamente a meu ver, entidades como a Federação Nacional dos Corretores de Seguros Privados e de Resseguros, de Capitalização, de Previdência Privada, das Empresas Corretoras de Seguros e de Resseguros (Fenacor) entre outras, têm o dever de preencher o papel de provedor de conhecimento técnico aos seus filiados. Assim como fez a ANBIMA no passado, pode-se ir muito além, criando certificações que atestem a capacidade e permitam a atualização por parte dos corretores de seguros. Afinal, contribuir para um patamar mínimo de conhecimento, ética e boas práticas é fundamental para que o canal de vendas seja eficiente e sustentável. Portanto, estas entidades devem urgentemente incorporar a cartilha dos deveres, muito além da necessária defesa de direitos.

Para o bem do cliente, motivo de ser de todos nós, à luz da desregulamentação dos corretores entendo ser o momento de mais “reflexões e menos reflexos.” Portanto, pensemos coletivamente um pouco mais sobre as mensagens da Sra. Solange Vieira e do Prof. Arley Boullosa. Afinal, estes nos mostram o tamanho do desafio assim como da oportunidade que temos à frente.