A decisão da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) desta semana, aprovando projeto de lei 380/2011 que determina reajuste automático da remuneração dos médicos pelas operadoras de planos de saúde, representa mais uma infeliz e desmedida interferência na saúde suplementar. As recentes interferências da Justiça Federal de São Paulo na tentativa de fixar reajustes de planos de saúde individuais e a decisão da presidente do Superior Tribunal Federal em suspender a implantação da resolução normativa da ANS sobre franquias e coparticipações, estão entre as inúmeras crescentes e preocupantes interferências no setor. Por trás de cada uma destas iniciativas há pressão corporativista de um ou mais elos da cadeia que, pela ausência de fundamentação técnica, ao fim e ao cabo acabam lesando o consumidor de plano de saúde.
Entendo que este tipo de medida é um reflexo do desequilíbrio histórico existente na relação de forças entre parrudas operadoras de planos de saúde de um lado e médicos fragmentados de outro. Concordo ainda que a remuneração médica precisa ser rediscutida. Porém, é inaceitável corrigir distorções a partir de novas distorções, como esta que se propõe o CAE. Isto acirra os ânimos, aumenta a guerra de trincheiras, não melhora o sistema e prejudica o consumidor.
Segundo o site Senado Notícias, “o texto, do médico e senador Eduardo Amorim (PSDB-SE), altera a lei que criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), conferindo ao órgão a competência para homologar e fiscalizar o cumprimento de acordos que reajustem a remuneração dos médicos.” Uma renomada profissional do setor de saúde suplementar traduziu muito bem o absurdo desta decisão em um grupo de discussões do qual participo. Diz ela: “querem transformar a ANS em sindicato dos médicos, responsável por homologar aumentos de honorários?” De fato, um enorme desrespeito ao órgão regulador.
Nesta mesma matéria divulgada no site Senado Notícias, o relator do projeto, médico e senador Ronaldo Caiado (DEM-GO), “defende que a remuneração pelas consultas há de ser adequada à complexidade do atendimento prestado pelos médicos”. Afinal, qual a relação entre a complexidade do ato médico e a indexação de consultas aos reajustes de planos de saúde? Indo além, por que será que o senador Caiado defende a indexação das consultas médicas como caminho para a melhor remuneração e não a melhor qualificação e avaliação de performance, por exemplo, como meios para a melhor remuneração? Por que propor que o rabo abane o cachorro e não o inverso? A discussão de melhor remuneração médica tem que necessariamente estar atrelada a entrega de valor. Enxergo esta única direção, pautada por “luz”, premissas técnicas e indicadores de qualidade, como viável e efetiva na obtenção de remuneração mais justa. Prontuário eletrônico do paciente, apuração de indicadores de desfecho e canais de comunicação específicos de usuários com as operadoras para avaliação do atendimento médico estão entre alguns dos caminhos possíveis para identificar, reconhecer e premiar profissionais de acordo com o valor do serviço que entregam.
“Sem uma contrapartida justa, é compreensível que os profissionais da área da saúde se sintam desvalorizados após tantos anos dedicados exclusivamente à Medicina e à constante atualização de seus conhecimentos”, ponderou ainda Caiado em seu relatório. Mas o que vem a ser contrapartida justa, senador? Simplesmente pagar mais? Pagar mais e igual para todos? Qual o limite do que é justo? O que é justo não deveria ser pautado pela entrega de valor ao paciente? Por que não falar em melhor remuneração num contexto de melhoria do sistema de saúde a partir da entrega de valor como, aliás, prevê o Triple Aim, lançado em 2008 pelo Institute for Healthcare Improvement (IHI). Este conceito é centrado em três dimensões: melhorar a experiência do indivíduo em relação à assistência; melhorar a saúde das populações e reduzir o custo per capita dos cuidados de saúde.
Pois bem, voltando ao tema deste projeto de lei, falemos do ponto de vista econômico sobre o quanto o mesmo é lesivo ao bolso do beneficiário de plano de saúde. Segundo nota técnica da ANS de fevereiro de 2018 sobre fatores econômicos do fator de qualidade (complementação da análise de impacto regulatório), “David Garrido destaca que o emprego do mecanismo de indexação… teve por consequência indesejável a perpetuação de uma inércia inflacionária que alimentaria os reajustes de preços do ano posterior. Assim, a retroalimentação inflacionária seria responsável por uma circularidade dos reajustes de preços na economia.” Portanto, indexar o reajuste de consultas ao reajuste do plano de saúde, além de não melhorar a entrega de valor do ponto de vista assistencial, é lesivo ao consumidor final.
A meu ver, as operadoras de planos de saúde cometeram um erro histórico no seu relacionamento com os médicos ao se utilizarem exclusivamente de leis de mercado (oferta e demanda) para pagar pouco a todos. Como bem diz meu pai, setenta ou oitenta reais é de fato pouco para o bom médico, mas muito para o mal médico. E agora pagam todo tipo de preço por este erro estratégico. Afinal, leis de mercado não resolvem todos os desafios do setor de saúde suplementar, motivo pelo qual se faz necessário um órgão regulador visando a busca de equilíbrio entre os envolvidos.
Pois bem, algumas operadoras de planos de saúde parecem ter verificado, e pontualmente já começam a corrigir, o tiro que deram nos próprios pés na medida em que: (1) com heróicas exceções, frequentemente atraíram médicos de menor qualificação pela baixa remuneração que ofereciam, (2) contribuíram para a deformação da consulta médica na medida em que muitos destes médicos as complementam com enormes quantidades de exames, deixando para estes e não para a anamnese o diagnóstico, levando ainda um custo final exorbitante das consultas, (3) jamais atrelaram a melhor remuneração a entrega de valor, (4) contribuíram para que alguns médicos cruzassem a linha ética, buscando complementação da baixa remuneração com fornecedores de insumos e (5) “expulsaram” muitos médicos com reconhecida reputação que simplesmente jamais aceitaram receber valores vis e portanto, não mantêm qualquer tipo de credenciamento médico.
Sobre este tema, recordo-me de uma conversa que tive com um renomado cirurgião cardíaco de São Paulo. Tendo retornado de uma viagem à Bahia, ele me chamou em seu consultório e se lamentou sobre a diferença gritante de remuneração das operadoras de planos de saúde para cirurgia cardíaca daquele estado comparativamente a São Paulo. Iniciei minha fala perguntando se, em função do que tinha testemunhado, ele tinha planos de se mudar para a Bahia (sabia que a resposta seria negativa). Em seguida, ele comentou que os cirurgiões de São Paulo tinham que se juntar para exigir melhor remuneração. Discordei dele dizendo que não achava que a remuneração tinha que ser igual para todos e emendei perguntando se ele achava que, diante do histórico de sua equipe, realmente era justo receber igual aos demais cirurgiões credenciados em São Paulo. Ele parou, refletiu e concordou comigo. Por fim, me dispus a ajudá-lo, procurando as principais operadoras de planos de saúde, com o objetivo de repactuar a remuneração de sua equipe. Nem ele acreditou quando viu a aderência das mesmas ao pleito. Ainda que não houvesse indicadores de desfecho disponíveis, o histórico e a reputação de sua equipe foram fundamentais para realinhar a sua remuneração. Uma determinada grande operadora confidenciou-me que jamais imaginou que aquela equipe vinha recebendo aqueles valores há tanto tempo e quase chegou a pedir desculpas pelo ocorrido. Em função do enorme número de credenciados, não havia estrutura de acompanhamento individualizado das negociações. Enfim, este simples exemplo foi importante para demonstrar para ao cirurgião e equipe o caminho mais adequado para a sua realidade em função da própria história.
Para outros tantos que têm se sentido impotentes diante do gigantismo das operadoras, resta uma medida extremamente simples, mas que demanda coragem: a rescisão de seus contratos com as operadoras de planos de saúde. Afinal, não há nada que os obrigue a trabalhar com condições com as quais não concordam. Para os que acharem que isto é difícil, recomendo conversarem com os anestesistas em alguns estados país afora. Estes simplesmente decidiram não trabalhar com operadoras de planos de saúde.
Independente do caminho acima citado ser uma alternativa, aquele no qual mais acredito em função da interdependência dos atores, passa pela construção conjunta de soluções tendo como norte a entrega de valor ao paciente. Este é o caminho mais alinhado com a sustentabilidade do sistema, motivo pelo qual lamento o desserviço prestado por entidades de classes que insistem em pautar sua agenda por músculos (corporativismo) e não neurônios (inteligência, transparência e fundamentação técnica). Enganam-se porque este caminho é simplesmente insustentável e lesivo a eles próprios. Assim como é lesivo ao consumidor de planos de saúde, motivo de ser de todos nós. Quanta miopia!! Em tempo: sou filho e neto de médico