Arquitetos da Saúde

Conoravírus: reflexões sobre a ética e a lei

Estamos vivendo uma montanha russa de sentimentos e reflexões no contexto da pandemia do coronavírus.  De um lado isso nos assusta, pois algo nesta proporção, além de inimaginável, não deixa claro quando será atenuado a ponto de voltarmos a ter uma vida normal, mesmo que diferente. De outro lado, nos acalenta quando vemos tantas demonstrações voluntárias de ajuda ao próximo, a partir de um olhar coletivo. Em outras situações, porém, nos irrita e entristece, na medida em que ainda sobrevivem aqueles que agem de forma oportunista pensando apenas no seu próprio benefício sem qualquer compromisso com a ética.

Outro dia e de forma inesperada isto tudo parece ter ficado um pouco mais claro para mim, quando pude refletir sobre o porquê de algumas de nossas reações neste momento em que os sentimentos estão expostos e a imensa maioria de nós está, felizmente, mais humana. Para fins desta reflexão, eu resumiria os sentimentos decorrentes de condutas pautadas exclusivamente pela lei e outras pautadas prioritariamente pela ética. Acredito que esta diferença ficará enraizada de forma mais clara em cada um de nós, exatamente pelo que temos todos vivenciado em tempos de coronavirus.

Antes de prosseguirmos, seria adequado uma rápida consideração sobre a distinção entre ambos. No artigo “A ética em conjunto com a lei”, a autora Eliane Scain cita que a lei está relacionada a “acordos de caráter obrigatório, estabelecidos entre pessoas de um grupo para garantir justiça mínima, ou direitos mínimos de ser”. A ética, por sua vez, se traduz num “conjunto de hábitos e costumes efetivamente vivenciados por um grupo humano.” Entre as semelhanças, a autora registra que “ambas se apresentam como normas que devem ser seguidas por todos; ambas procuram propor uma melhor convivência entre os indivíduos; ambas resultam de um caráter histórico e social que se orientam por valores próprios de uma determinada sociedade.”

Quanto as suas diferenças, segundo o professor e educador Gilberto Cotrim “a ética se caracteriza por ser mais informal, enquanto que a lei se apresenta como um instrumento formal, escrito e promulgado; a ética poderá assumir uma variação no âmbito de um mesmo grupo, enquanto que a lei apresenta-se como sendo única para um determinado grupo; o não cumprimento de uma norma ética poderá provocar uma rejeição do grupo ou um isolamento do transgressor, enquanto que o não cumprimento de uma lei ou a sua desobediência gera uma penalidade ao transgressor; o âmbito de abrangência da ética é maior, atingindo vários aspectos da vida humana, enquanto que a lei se restringe a questões específicas de condutas sociais; a ética se caracteriza mais pela liberdade dos indivíduos, enquanto que a lei é imposta para o cumprimento obrigatório de todos os indivíduos do grupo.”

Na prática, existem comportamentos que podem ser éticos e legais, assim como outros que podem ser éticos, mas ilegais, e outros ainda que são legais, mas antiéticos perante a sociedade.  Sobre esta última possibilidade, recordo-me de uma frase de meu pai, médico e filósofo, quando dizia que muitas vezes “a lei burla o cidadão.” Em outras palavras, a ética deve estar acima da lei. Não estou aqui dizendo que devemos renunciar a um em detrimento do outro, mas que na dúvida fiquemos com a ética, pois ela será sempre o norte que alimentará o tecido da boa convivência. Afinal, e já concordando com Leonardo Boff, “a ética é tudo aquilo que ajuda a tornar melhor o ambiente, para que seja uma moradia saudável: materialmente sustentável, psicologicamente integrada e espiritualmente fecunda.”

Dito isso, qual a relação desta reflexão com a pandemia do coronavírus? Simples, o fato de que temos tido inúmeros exemplos da prevalência de um ou outro conceito, mas com impactos distintos em nossos pensamentos e sentimentos. Vejamos alguns exemplos:

Telemedicina

À luz do Conselho Federal de Medicina (CFM), acredito que todas as instituições que já a praticavam até a sua recente e incompleta regulamentação, entre as quais o renomado Hospital Israelita Albert Einstein, estavam infringindo a lei, no caso, as normas previstas pelo CFM.

Curioso observar que apenas agora o CFM reconheceu a possibilidade de uso da telemedicina no país, além daquilo que já estava estabelecido na Resolução CFM nº 1.643/2002 que, aliás, continua em vigor. Em tempo, a referida decisão vale em caráter excepcional e enquanto durar o combate à pandemia de Covid-19. E aí? Me pergunto. A ética pode ser relativa ou esta decisão tardia apenas deixou latente que o paciente vinha sendo burlado em suas necessidades?

Fornecimento de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs)

Recentemente fui procurado por um amigo que queria fazer uma doação de equipamentos de proteção individuais (EPIs) para uma instituição filantrópica na área de saúde. Resolvi ajudá-lo a tentar encontrar um fornecedor. Qual não foi minha surpresa ao receber a informação de que, dada a escassez de oferta, o preço unitário da máscara que já estava em mais de cinco reais num dia, tinha passado para onze na manhã seguinte! Não preciso me estender neste assunto a não ser para registrar que contraindiquei ao meu amigo este fornecedor, o que foi prontamente acatado. Poucos dias depois, o meu amigo me retornou informando que tinha conseguido fazer a doação que tanto queria, mas com base em valores unitários infinitamente menores.

Felizmente temos visto inúmeros exemplos do inverso. Neste mesmo contexto com o qual nos deparamos, outros tantos colocam a ética acima das leis (inclusive as de mercado). Na mesma semana do caso que citei acima, o presidente de uma rede de unidades de saúde me relatava com imenso orgulho e uma certa emoção, a postura ética de um fornecedor de máscaras no Rio de Janeiro que, com um irrisório aumento de custo no valor praticado até então (apenas o suficiente para suprir investimentos necessários para tal), ampliou os turnos de seu negócio para poder atender as demandas crescentes e urgentes.

Abordagens distintas para um mesmo problema não deixam dúvida de qual conduta nos causa mais conforto e admiração. Naturalmente que lucros são necessários para a manutenção de serviços de qualquer natureza, mas os caminhos para chegar lá é que fazem a diferença daqueles que entendem o contexto onde estão inseridos. Em última instancia, os caminhos a serem escolhidos muitas vezes acabam distinguindo os oportunistas dos éticos.

Suspensão de atendimentos eletivos

Conforme consta no site da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), “devido à crise causada pela pandemia do coronavírus e diante da necessidade de reduzir a sobrecarga das unidades de saúde e de evitar a exposição desnecessária de beneficiários ao risco de contaminação, a Agência prorrogou, em caráter excepcional, os prazos máximos de atendimento para a realização de consultas, exames, terapias e cirurgias que não sejam urgentes.” Porém, os prazos máximos para internações eletivas, que antes eram de vinte e um dias úteis, passaram a ficar temporariamente suspensos.  Ato contínuo, algumas operadoras de planos de saúde se aproveitaram desta decisão e oportunamente passaram a cancelar de forma inesperada e unilateral todos os procedimentos eletivos. Um claro exemplo onde utilizou-se de uma alteração temporária na lei exclusivamente a seu favor, atropelando as recomendações de hospitais em conjunto com médicos e seus respectivos pacientes que, a meu ver, sempre deveriam ser soberanas. Naturalmente, não há maior interesse que não o dos hospitais quanto ao cumprimento técnico e atuação ética em prol dos pacientes. Não cabe, portanto, o uso oportunista de uma decisão do órgão regulador de apenas suspender prazos máximos, mas não proibir as internações eletivas. Em suma, um mal exemplo da interpretação da lei em prejuízo da ética.

Concluindo, exemplos como os acima citados fazem parte do nosso dia a dia em qualquer contexto e em qualquer indústria.  Porém, no contexto da saúde num momento de pandemia, fica mais claro e latente a importância de que a ética sempre prevaleça em nossas decisões.  Não há outro caminho que não este para tornarmos o ambiente mais agradável, a sociedade mais humana e o sistema mais sustentável. Ao fim e ao cabo, o que fica claro é que a ética nos aproxima, ao passo que determinadas lei e/ou suas equivocadas interpretações, podem muitas vezes nos afastar.